Rádio Germinal

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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Marx e os Movimentos Sociais

VIANA, Nildo. Marx e os Movimentos Sociais. Pará de Minas: Virtualbooks, 2017.
Capa de Ediney Vasco.

O que Marx tem a dizer sobre movimentos sociais? Segundo alguns, nada. Para outros, teria apenas uma contribuição para a discussão sobre o movimento operário ou então limitada ao século 19. Um conjunto de intérpretes atribui a ele certas considerações sobre os movimentos sociais que seria sua suposta contribuição. A perspectiva da presente obra é distinta: Marx oferece diversas contribuições para uma teoria dos movimentos sociais, desde a metodológica, passando pela teoria da história e do capitalismo, até chegar a alguns apontamentos mais diretos sobre grupos sociais que são base de movimentos sociais. A conclusão é a de que Marx oferece uma inestimável contribuição para a teoria dos movimentos sociais e precisa ser resgatada para fazer avançar tal teoria.

A Opressão das Mulheres - Christophe Darmangeat

DARMANGEAT, Christophe. A Opressão das Mulheres. No passado, presente - para acabar no futuro! Uma perspectiva marxista. Rio de Janeiro: Rizoma, 2017.
Prefácio de Nildo Viana, capa de Edinei Vasco, tradução de Rodrigo Silva do Ò.

Para adquirir:
http://rizomaeditorial.com/store/index.php?route=product/product&path=59_74&product_id=589

Opressão da mulher é universal como afirmam algumas antropólogas? Existiu um “matriarcado” segundo dizem alguns marxistas? A opressão da mulher pode ser abolida no capitalismo? Estas questões sempre permearam as discussões sobre a questão da mulher e foram abordadas sob formas distintas pelo marxismo, antropologia e feminismo. Christophe Darmangeat retoma estas questões e apoiando-se em fatos mais recentes, rediscute a questão da opressão das mulheres num debate com estas concepções. O resultado é uma análise inovadora da questão da opressão das mulheres, na qual se refuta certas ideias defendidas por marxistas, antropólogas e feministas. É uma obra importante para reabrir e aprofundar a discussão sobre as origens da opressão das mulheres e que aponta para novos debates e polêmicas a respeito desta questão fulcral de nossa época, pois, como já dizia Marx, a relação entre mulheres e homens é um medidor do grau de civilização a que chegamos. A conclusão da obra é a de que precisamos avançar no processo civilizatório, o que significa a abolição da opressão da mulher e instauração de uma sociedade comunista. §§§ LANÇAMENTO! Brochura com 60 páginas, no formato 14X21cm;

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

OS DILEMAS DA FORMAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE


OS DILEMAS DA FORMAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE

Nildo Viana


Resumo:
O presente artigo discute a questão da formação na sociedade contemporânea, colocando em evidência os seus dilemas e impasses. O primeiro ponto de discussão é o dilema do alto grau de desenvolvimento tecnológico convivendo com um descompasso com a formação intelectual. Derivado disso, vários impasses são constituídos na contemporaneidade. Após uma expor o contexto geral da sociedade contemporânea e os seus dilemas e impasses, o artigo discute a possível solução para o atual estado de coisas. A autoformação individual e coletiva e a transformação social radical e total são as formas de superar os entraves para a formação e reprodução da humanidade no atual momento histórico.
Palavras-chave: Formação, Autoformação, Sociedade Contemporânea, Dilemas, Tecnologia, Capitalismo.

A sociedade contemporânea vive um dilema que perpassa o conjunto das relações sociais e coloca em risco a própria sobrevivência da humanidade: o processo de formação não acompanha o grau de desenvolvimento tecnológico e a superação que alguns apontam seria o uso da tecnologia e aprofundamento da situação problemática enquanto que outros simplesmente querem voltar no tempo e recuperar a educação tradicional. Em ambos os casos, não temos uma real solução. A superação desse dilema só é possível se superarmos o presentismo e o passadismo (BERGER, 2015). Essa superação, no entanto, requer uma reflexão sobre o problema da formação na contemporaneidade e contribuir com esse processo reflexivo é o objetivo do presente texto.
A relação entre indivíduo e sociedade é complexa e tem como elemento fundamental o processo de formação social do indivíduo. Esse processo é marcado pela socialização e pela individuação. A socialização é o processo pelo qual o indivíduo se torna um ser social e isso se realiza sob forma específica em cada sociedade específica, bem como é preparado para viver sob determinadas relações sociais, ou seja, tem um elemento universal e outro histórico-particular (VIANA, 2011). O aspecto universal é benéfico para a humanidade, pois é um processo de humanização, no qual o indivíduo se torna um ser humano. O aspecto histórico-particular é problemático no sentido de que é uma formação no interior de uma sociedade de classes. E, junto com isso, temos uma formação genérica e outra diferencial (por classe, sexo, etc.).
Esse processo de socialização é também um processo de individuação, ou seja, de formação da individualidade. O indivíduo é constituído socialmente, mas isso ocorre no conjunto complexo de relações sociais que são distintas. Essa distinção é derivada da inserção específica e única de cada indivíduo no interior da sociedade. O processo histórico de vida de um indivíduo é singular. E isso proporciona para tal indivíduo sua singularidade psíquica (VIANA, 2011), ou, em outras palavras, sua individualidade ou personalidade. O processo de formação social do indivíduo na sociedade moderna é marcado pela socialização (infância), ressocialização (juventude) e desenvolvimento (maturidade)[1].
Assim, o processo de formação é algo amplo e complexo, que remete para o processo de formação social do indivíduo e formação intelectual (mental), que são coisas inseparáveis. A formação social é totalizante: intelectual, ética/moral, sentimental, relacional (coletiva: civil, cívica, profissional). Esse processo complexo assume formas distintas em sociedades distintas e por isso é necessário entender que ela tem um duplo caráter: universal e histórico-particular.
Para entender o processo de formação na sociedade moderna, o que, por sua vez, é fundamental para compreender os dilemas da educação na contemporaneidade, é necessário compreender tal sociedade. Não poderemos, obviamente, desenvolver aqui uma análise da sociedade capitalista. A essência da sociedade capitalista, que é o modo de produção capitalista, já foi abordada por Marx (1988), bem como diversos pensadores ajudaram a compreender algumas de suas características. A sociedade capitalista tem como determinação fundamental o modo de produção capitalista, que caracterizada pela produção e apropriação de mais-valor, o que constitui as duas classes sociais fundamentais dessa sociedade, o proletariado e a burguesia. O proletariado produz mais-valor e a burguesia extrai mais-valor e assim acumula capital e acaba controlando o processo geral de produção e reprodução das riquezas. Ao lado dessas duas classes sociais fundamentais emergem diversas outras subsidiárias (burocracia, intelectualidade, subalternos, camponeses, etc.). A produção de mais-valor ocorre através da produção de mercadorias[2] e isso gera um processo de mercantilização das relações sociais (VIANA, 2016). Este processo contém diversos outros elementos e gera diversas consequências, o que não será possível abordar aqui, mas que é um pressuposto de toda análise que virá a seguir.
Um elemento da sociedade moderna, no entanto, é importante para analisar o processo de formação na contemporaneidade. Trata-se do conceito de sociedade civil. Esse termo já foi abordado por toda uma tradição filosófica, desde os contratualistas (HOBBES, 1983; LOCKE, 1978; ROUSSEAU, 1987) até Hegel (1990), e por outros pensadores, como Marx (1983) e Gramsci (1988). Por questão de espaço, não poderemos retomar tal discussão, mas tão-somente apresentar a nossa concepção de sociedade civil. Entendemos que uma sociedade é formada pelo modo de produção dominante e modos de produção subordinados (no caso do capitalismo, o modo de produção capitalista como dominante e alguns outros como subordinados, como o modo de produção camponês, artesão, cooperativo, latifundiário, etc.) e formas sociais, o que Marx denominou “formas jurídicas, políticas, ideológicas" e ficou popularizado como “superestrutura”. Essas formas sociais podem ser privadas ou estatais (VIANA, 2007). Denominamos “sociedade civil” as formas sociais privadas, ou seja, aquilo que engloba a família, as igrejas, os partidos, as formas de consciência dos indivíduos fora das relações de trabalho e aparato estatal, etc.
O indivíduo é formado no conjunto das relações sociais. Logo, o processo de formação individual se dá no conjunto da sociedade. Porém, a formação que ocorre no âmbito do trabalho, na nossa sociedade, é um processo geralmente secundário. A formação do indivíduo ocorre inicialmente na sociedade civil (família, por exemplo). A formação que ocorre no âmbito político também é posterior. Geralmente, o indivíduo passa pela socialização (família, escola, comunidade, etc.) e pela ressocialização (ensino técnico e superior, etc.), para depois adentrar ao mundo laboral e político.
Assim, a formação individual e mental ocorre no âmbito familiar e escolar (e vai se deslocando paulatinamente do familiar para o escolar, o que se percebe com a entrada cada vez mais cedo das crianças nas escolas). A família, como um espaço de educação inicial, cumpre uma função fundamental no sentido da humanização, através da educação sentimental e formação do ser social. A escola é outra instância fundamental e sua colaboração com a formação se dá através do saber básico, especializado, profissional, repassando os valores dominantes, a moral dominante. O seu significado é outro, pois a escola é voltada para a reprodução social, tal como vários autores apontaram (Bourdieu e outros), e como reproduz uma sociedade fundada na divisão de classes, então reproduz suas contradições e lutas.
No âmbito da sociedade civil há um elemento fundamental que ajuda a explicar o processo de formação: a sociabilidade capitalista. Essa é marcada pelo processo de mercantilização, burocratização e competição social (VIANA, 2008) e isso é um dos elementos básico da formação social dos indivíduos no capitalismo. É na sociedade civil que se reproduz a hegemonia (valores, ideias, etc.) e exigências sociais (trabalho e obrigações sociais). Portanto, a sociedade civil e a sociabilidade capitalista são fundamentais para explicar o processo de formação na sociedade moderna.
O Estado é outro elemento fundamental para explicar a formação na sociedade e moderna. Ele tem todo um aparato cultural, bem como aparato educacional, que interfere diretamente na formação dos indivíduos. Ele interfere indiretamente na sociedade civil através da legislação e outros processos. Assim, o Estado tem as instituições estatais de educação, o controle burocrático via ministérios da educação efetivada nas escolas particulares, tem uma política cultural determinada e que atinge a população, entre diversos outros elementos que o tornam um dos pilares da formação social dos indivíduos no capitalismo.
Assim, todo este processo de socialização, ressocialização e desenvolvimento na sociedade capitalista são marcados por um conjunto diversificado de instituições, relações, etc., que não pode ser separado de determinada hegemonia que se estabelece em determinado momento, impondo determinados valores, concepções, etc., que atinge distintamente as gerações. Contudo, há também um processo de conflito dentro da sociedade moderna. As duas classes sociais fundamentais geram dois campos antagônicos que vivem em luta e em certos momentos históricos revelam o antagonismo e nesse processo é outra fonte de formação social do indivíduo. Devido à questão de espaço não desenvolveremos isso aqui, mas é preciso alertar que, especialmente para o proletariado, a luta de classes é elemento fundamental para seu processo de formação.
Por fim, é importante destacar que a formação social do indivíduo tem uma forma e uma finalidade. A forma, no caso da sociedade moderna, é burocrática e ocorre em diversos lugares, tais como as escolas (instituições burocráticas), sociabilidade capitalista, etc. O controle é fundamental. E ele é fundamental por causa da finalidade dessa formação: a reprodução da sociedade capitalista. Para o indivíduo, isso aparece sob a forma de interesses pessoais (definidos por essa sociedade e que significa integração nessa sociedade, tal como mercado de trabalho, ganhar competição social, etc.) e que significa um processo de reforço da reprodução do capitalismo.
Uma coisa é o que é a formação no capitalismo, outra coisa é o que ela deveria ser. O que deveria ser depende dos valores e interesses de quem indica o dever-ser. Ela deveria ser uma autoformação individual e coletiva. Sem dúvida, isso aponta para a crítica da sociedade existente e o projeto de uma nova sociedade, pois esse processo é impossível no interior do capitalismo. Então a forma assumida pela formação deveria ser a autoformação. E sua finalidade deveria ser a emancipação (no capitalismo) e o desenvolvimento onilateral (na sociedade autogerida). Ou seja, a finalidade da formação no capitalismo deve apontar para a emancipação, sendo que esta luta já anuncia o desenvolvimento onilateral, mas parcialmente, e a finalidade da formação na futura sociedade pós-capitalista (autogestão social) é o desenvolvimento onilateral, ou seja, do conjunto das potencialidades humanas.
Após esta discussão mais geral para contextualizar a perspectiva da qual partimos, passamos agora a tratar da formação na contemporaneidade. Os elementos gerais apontados anteriormente continuam válidos e explicando o processo de formação na sociedade capitalista. Contudo, a sociedade capitalista não é estática, ele mantém sua essência, mas muda sua forma. Esse processo, numa perspectiva crítica, é explicado através da sucessão de regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2015; ORIO, 2014; BRAGA, 2013). Cada fase da sociedade capitalismo corresponde a um regime de acumulação[3] e este gera um processo de mutação cultural[4].
A sociedade contemporânea é caracterizada justamente por ter instaurado um novo regime de acumulação. O regime de acumulação integral (VIANA, 2009; VIANA, 2015; ORIO, 2014; BRAGA, 2013) é instaurado nos anos 1980 no capitalismo imperialista, mas alguns de seus elementos constitutivos começam a se esboçar antes. Esse processo teve na rebelião estudantil de maio de 1968 um ponto de partida, pois a derrota da luta de estudantes e trabalhadores franceses fez emergir uma contrarrevolução cultural preventiva (VIANA, 2009)[5]. Essa contrarrevolução cultural preventiva gerava ideologias que produziam uma despolitização das críticas realizadas no período anterior. Assim, a crítica do cotidiano capitalista e da razão instrumental, por exemplo, se tornaram a crítica do cotidiano e da razão fora da totalidade da sociedade capitalista, marcado pela recusa da totalidade. Essa recusa da totalidade significava, no fundo, uma reusa do marxismo que emerge nesse momento, que retoma a radicalidade do pensamento de Marx e outros. Ela assume a forma de “história em migalhas”, recusa das “metanarrativas” (LYOTARD, 1993) ou da teoria (FOUCAULT, 1989), etc.
É nesse contexto que vai emergir um novo paradigma hegemônico: o subjetivismo. Se durante o regime de acumulação conjugado o paradigma hegemônico era o reprodutivista, com seu caráter holista, objetivista, formalista, etc., expresso em ideologias como o estruturalismo, funcionalismo, “teoria” dos sistemas, etc., o novo paradigma enfatiza o subjetivismo, recusa a totalidade, etc. Emergem novas ideologias que reproduzem tal paradigma, como o pós-estruturalismo, multiculturalismo, estudos culturais, ideologia do gênero, etc.

É nesse contexto que emerge uma nova política cultural do Estado capitalista após 1980. A política cultural do Estado capitalista é um dos pilares para a constituição do novo paradigma, tal como se observa nos Estados Unidos e outros países. No entanto, organismos internacionais, como especial destaque para a UNESCO. Fundações (internacionais e nacionais), CIA (Central de Inteligência Americana), entre diversas outras, são fortes fontes de produção e reprodução dessa política cultural e renovação hegemônica. Assim, as políticas governamentais e, mais especialmente, o capital comunicacional inicia esse processo de reproduzir e popularizar o novo paradigma hegemônico.
Um elemento que ocorre junto com esse processo é o desenvolvimento tecnológico. O processo de desenvolvimento tecnológico gera uma mercantilização crescente da tecnologia, que se inicia com vídeos-games e outros aparelhos e ganha um salto com os computadores e celulares, com todos os acessórios. Nesse contexto, a internet é uma novidade que parece ser benéfica ao permitir o desenvolvimento da comunicação. No entanto, a internet oferece uma falsa democratização. A falsa democratização da internet se revela em diversos aspectos. O primeiro deles é que ela permite um acesso à informação como nunca antes visto na história da humanidade. Contudo, nem todos tem acesso à internet. Os mais pobres estão excluídos do acesso à internet ou possui um acesso precário (em alguns lugares públicos, no trabalho, etc.). Da mesma forma, nem todos tem a mesma qualidade de acesso à internet (pois ela é mercantilizada e depende de planos de conexão pagos que varia de acordo com o poder aquisitivo dos indivíduos, bem como com máquinas distintas – celulares/computadores mais potentes ou com mais recursos são mais caros e a população com menos recursos utilizará aparelhos mais velhos, usados, ou com menos potência e recursos).

Esses problemas remetem para a questão das classes sociais e suas formas diferentes de acesso à internet. No entanto, há um outro problema relativo à internet. É que o conjunto de informações disponíveis na internet não é acessado da mesma forma pelos indivíduos de diferentes classes sociais, entre outras divisões sociais. Há um acesso seletivo. E o processo de acesso relativo possui múltiplas determinações, tais como o poder aquisitivo. Mas mais do que o poder aquisitivo há outro grave problema: a falta de formação. A sociedade contemporânea é rica em distribuir informação, mas é pobre em fornecer formação. Num mundo de milhões de informações disponíveis, é necessária formação intelectual para escolher o que procurar, onde, como, com quais critérios. Os sites mais acessados são aqueles vinculados com o capital comunicacional (“indústria cultural”, tais como as redes de TV, grande jornais e revistas, etc.), grandes empresas, celebridades, etc. O grau de formação é tão precário na contemporaneidade que é possível ver professores doutores reproduzirem sites de notícias falsas (são sites de humor que noticiam coisas falsas, mas como se fosse algo sério e verdadeiro), demonstrando que a quantidade enorme de informação e a rapidez das “trocas informativas” são acompanhadas por formação precária, acriticidade, etc. Em outras palavras, de nada adianta ter em seu computador todo acervo da produção cultural da humanidade, se não tem formação para realizar as escolhas, separar o falso do verdadeiro, o que é de alta qualidade do que é de baixa qualidade, do que é justo ou injusto, do que é original e do que é cópia, etc.

E no interior das redes sociais temos um processo no qual todos podem manifestar suas opiniões, sejam sobre as coisas mais inúteis e corriqueiras, até as questões políticas, morais, sociais e financeiras da qual pouco se sabe, seguindo acriticamente correntes de opiniões vigentes ou a que é predominante. É nesse contexto que alguns autores vão colocar a questão da reprodução das opiniões problemáticas que qualquer um pode divulgar nas redes sociais (ECO, 2017). A internet reproduz a sociedade capitalista. Ela reproduz também suas divisões, contradições, lutas, etc., mas o predomínio é da hegemonia burguesa, seja sob uma ou outra forma (conservadora, progressista, etc.).

Da mesma forma, há um processo de manipulação nas redes sociais por parte de seus proprietários. O facebook, por exemplo, é um manipulador e influenciador de muitos usuários, sob várias formas. Além disso, a superficialidade, a rapidez, a pressa, são outros processos que acompanham o uso da internet e que vem dificultando o processo de formação. Assim, alguns críticos da internet colocam a questão da superficialidade e dos efeitos dela sobre os indivíduos (CARR, 2017).

Esse processo é reforçado, no entanto, por um outro fenômeno. O novo paradigma hegemônico, subjetivista, gera uma recusa da teoria, da razão, etc., o que cria um conjunto de concepções anti-intelectualistas, individualistas, irracionalistas, que servem de justificativa para a não-formação, a negação da leitura, etc. Ao lado disso, interesses e oportunismos reforçam discursos sobre “vivência” e “lugar de fala”, para citar apenas dois exemplos, que apontam para um fortalecimento da má formação sob a máscara da recusa da formação. O subjetivismo reinante aliado com as redes sociais e as novas possibilidades de trocas comunicativas gera um processo crescente de expansão de um certo “autismo intelectual”, seja individual ou coletivo, no qual a comunicação com os que pensam diferente se torna uma incomunicação.

É nesse contexto que temos os impasses contemporâneos no que se refere ao problema da formação. Os principais impasses da formação na contemporaneidade são os seguintes: a) Excesso de informação e precariedade na formação; b) Excesso de autoconfiança e precariedade em esforço e reflexão; c) Excesso de moralismo e precariedade de ética; d) Excesso de politização despolitizada e precariedade de politização real; e) Manutenção da hegemonia burguesa e lutas internas (conservadorismo versus progressismo) em detrimento de uma colaboração real no processo de formação e produção intelectual.
O primeiro desses impasses já foi discutido aqui, que é o excesso de informação em contraste com a precariedade da formação e por isso dispensa mais comentários. O excesso de autoconfiança e precariedade em esforço e reflexão é algo incentivado pelo paradigma subjetivista, mas também é reforçado pela educação burocrática e desinteressante e outros processo sociais. O excesso de moralismo é um desenvolvimento mais recente da sociedade capitalista, na qual via internet e redes sociais, as pessoas começaram a fazer o discurso de “politizar a vida privada” e, no fundo, o que fizeram foi a “moralizar”, pois isolam a vida privada da história e do conjunto de relações sociais que a explica, bem como troca a compreensão pelas “receitas” que são verdadeiras normas de conduta, desde o “politicamente correto” ao “politicamente incorreto”, duas faces da mesma moeda. O moralismo (e o pseudomoralismo, mais conhecido como “falso moralismo”, que o acompanha) é artificial e imposto socialmente, expressando determinados interesses de classe e outros derivados. A moral é distinta da ética (VIANA, 2000), pois esta apresenta coerência entre os valores fundamentais do indivíduo e suas ações reais, enquanto que a moral é um produto social e histórico que nem sempre se fundamenta na coerência entre discurso e prática.
O excesso de politização é expresso não somente por querer “politizar a vida privada”, retirando ela da totalidade e, por conseguinte, despolitizando-a, mas também por trazer um discurso político falso, frágil, sem fundamentação e desenvolvimento. Assim, tudo virou “comunista” (segundo os conservadores) ou “fascista” (segundo os progressistas), duas formas de despolitizar supostamente “politizando”. A manutenção da hegemonia burguesa e do paradigma subjetivista que lhe acompanha e suas lutas internas, especialmente entre progressistas e conservadores, tal como se vê nos partidários e críticos da “escola sem partido” é prejudicial ao processo de formação, pois apenas querem mudar ou manter as regras do jogo e não acabar com o jogo[6]. A questão é quem e como vai doutrinar ao invés de se repensar a educação escolar de forma ampla e discutir a questão fundamental da qualidade, do seu significado social, das contradições e desigualdades, etc. É outro processo de politização despolitizada.

Como resolver esses impasses? Como resolver o dilema do alto grau de desenvolvimento tecnológico e indivíduos cada vez mais infantilizados para utilizar tal tecnologia? A superação desses impasses e do dilema que está relacionado com eles é o abandono do passadismo e do presentismo. Esse processo vale para todos os processos sociais e deriva de um projeto de sociedade. Segundo Berger (2015, p. 218), “os projetos passadistas e presentistas são variados e possuem divisões internas (além da oposição entre eles), o que é comum na sociedade moderna”, um quer voltar ao passado e o outro quer manter o presente. No entanto, existe outro projeto, o futurista, pois este “rompe com as amarras do passado e do presente”. Assim, a solução dos dilemas e impasses da formação na contemporaneidade remete a uma formação para o futuro.
Uma formação para o futuro traz a necessidade de ampliar o processo de formação intelectual e revalorar a teoria, a autoformação (e não autodeformação)[7]. Uma nova sociedade só pode emergir através de um grau elevado de desenvolvimento cultural e a teoria é fundamental nesse processo. A razão, desde que não seja a instrumental (ligada ao processo de reprodução do poder e do capitalismo) deve ser revalorada, pois ela tem um significado fundamental para o desenvolvimento da humanidade, para a superação do obscurantismo. Além disso, a superação da incomunicação só pode ocorrer via razão. Da mesma forma, é preciso recuperar a necessidade de arte, teoria, produção intelectual significativa e não meramente mercantil, modismos, etc. A mercantilização da arte e sua decadência contemporânea (tal como se vê no caso exemplar da música), o controle burocrático e mercantilização da produção intelectual em geral, são processos que devem ser combatidos e formas alternativas de criação intelectual (teórica, artística, etc.) devem ser produzidas.
Esse processo todo deve ser realizado ao lado da autoformação. Em outras palavras, a revaloração da teoria, da arte, etc., tem que ser realizada via um processo de autoformação individual e coletiva, o que significa que não se trata de reproduzir os modismos e concepções hegemônicas e sim desenvolver um processo de pensamento crítico e produção intelectual engajada no sentido da transformação total das relações sociais existentes. Os obstáculos para essa mutação de valores e processo de autoformação são por demais evidentes, mas faz parte da luta cultural e é condição para redirecionar uma sociedade que caminha rumo ao barbarismo no sentido de ir para o caminho do futuro e da libertação humana.
Em síntese, é fundamental ampliar a autoformação individual e coletiva, no sentido de lutar pela transformação social, que, uma vez realizada, permite uma autoformação coletiva e individual plena numa sociedade autogerida. Esse é um meio de buscar superar os impasses e dilemas da formação contemporânea, mas deve ser num sentido crítico, rompendo com a hegemonia e ideias dominantes, o que significa uma luta do indivíduo contra ele mesmo (interesses pessoais, formação anterior, etc.), o que deve ser acompanhado pela necessidade de compreensão que isso só se mantém se o objetivo final, a transformação radical e total das relações sociais, for o fio condutor do processo de autoformação. Esse processo também deve ser coletivo, através da articulação de diversos indivíduos buscando sua autoformação individual e em colaboração com eles a autoformação coletiva. Ao lado disso, a luta pela transformação da escola e da educação escolar, no sentido de uma pedagogia autogestionária, de ampliação do pensamento crítico, etc., são outros elementos dessa luta mais ampla, que é a luta cultural pela constituição de uma nova sociedade.

Referências

AVANZINI, Guy. O Tempo da Adolescência. Lisboa, Edições 70, 1980.

BERGER, Patrick. Movimentos Sociais, Futuro e Utopia. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 02, num. 03, jan./jun. 2015.

BRAGA, Lisandro. A Teoria do Regime de Acumulação Integral. Revista Conflicto Social. Ano 06, num. 10, Jul./Dez. 2013.

CARR, Nicholas. O Google Está nos Tornando mais Estúpidos? Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2008/01/o-google-esta-nos-tornando-estupidos.html  Acessado em 01/12/2017.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

HEGEL, G. W. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa: Guimarães, 1990.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. In: Col. Os Pensadores. 3ª edição, São Paulo, Abril Cultural, 1983.

LAPASSADE, Georges. A Entrada na Vida. Lisboa, Edições 70, 1975.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. 4ª edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 1, 3a Ed., São Paulo: Nova Cultural, 1988.

ORIO, Mateus. O desenvolvimento capitalista na sucessão de regimes de acumulação. Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES-Go. Vol. 02, nº 09, 126-139, Jul. 2013/Jan. 2014.

RODRIGUEZ, Leon. Autogestão e Formação. Revista Marxismo e Autogestão. Ano 01, Num. 01, jan./jun. 2014. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/15rodriguez1/69 Acessado em 08/12/2014.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Col. Os Pensadores. 4ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1987.

VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007b.

VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. 2ª edição, São Paulo: Ar editora, 2014b.

VIANA, Nildo. A Filosofia e sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal, 2000.

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. São Paulo: Ar Editora, 2016.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

VIANA, Nildo. Introdução à Sociologia. 2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.

WILLIANS, Marc. Autogestão e Planificação. Revista Marxismo e Autogestão. Vol. 02, num. 04, jul./dez. de 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/8willians4/323 acessado em 28/12/2015.






[1] Esse é um processo típico da sociedade moderna, pois nas sociedades pré-capitalistas não existe o processo de ressocialização, ou seja, a juventude, que é uma criação do capitalismo devido o processo de formação da força de trabalho (VIANA, 2014; VIANA, 2015). Esse processo foi percebido por alguns autores, tal como a necessidade de “entrada na vida” para se tornar um “adulto-padrão” (LAPASSADE, 1975) ou como a escola é fundamental no processo de formação da juventude enquanto grupo social (AVANZINI, 1980).
[2] A produção de mercadorias existiu antes do capitalismo, mas não era produção de mais-valor. A produção de mais-valor é a forma especificamente capitalista de produção de mercadorias (VIANA, 2009).
[3] Um regime de acumulação é constituído por uma determinada forma assumida pelo processo de valorização (organização do trabalho), forma estatal e forma de exploração internacional. Assim, se tivemos o regime de acumulação conjugado de 1945 até o final dos anos 1970, ele foi caracterizado pelo fordismo (processo de valorização), Estado integracionista, mais conhecido como de “bem estar social” ou “keynesiano” (forma estatal) e expansão do capital oligopolista transnacional, mais conhecido como “multinacionais” (forma de exploração internacional). A partir dos anos 1980 há mudança nesses elementos, gerando um novo regime de acumulação, fundado no toyotismo (processo de valorização), neoliberalismo (forma estatal) e hiperimperialismo (forma de exploração internacional).
[4] Essa mutação cultural assume a forma de “renovação hegemônica”, instituindo um novo paradigma e novas ideologias filiadas a ele.
[5] Essa derrota ocorreu também em diversos outros países, como Itália e Alemanha, apesar de não ter atingido a força e a radicalidade que teve na França. A derrota, no entanto, não foi total, pois as lutas operárias na França e Itália continuaram com relativa força até início dos anos 1970.
[7] Sobre autoformação e sua relação com a transformação social e a instauração de uma nova sociedade, cf. Rodriguez (2014). O processo de formação e seu caráter fundamental para a constituição de uma nova sociedade é destacado nesse artigo. E isso é perceptível também quando se trata da questão da planificação na sociedade autogerida: “É por isso que, sem cair no utopismo, é preciso realizar reflexões hoje sobre a sociedade do futuro, pois permitirão aqueles que estiverem envolvidos, já possuir elementos, ferramentas mentais, para poder pensar o novo e realizá-lo com maior precisão e facilidade, além de contribuir para dificultar uma contrarrevolução por causa da presença dessas dificuldades. A formação intelectual é fundamental desde hoje para o sucesso da revolução autogestionária” (WILLIANS, 2015, p. 41). Uma sociedade superior pressupõe um desenvolvimento superior da consciência. Portanto, nada mais contraditório certas correntes políticas, devido influência do paradigma subjetivista, desvalorar a teoria e a formação intelectual e cair no pragmatismo e praticismo.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

SOCIOLOGIA CRÍTICA E ESFERA CIENTÍFICA


SOCIOLOGIA CRÍTICA E ESFERA CIENTÍFICA

Nildo Viana


A dinâmica das esferas sociais se reproduz no interior das subesferas. A esfera científica possui uma dinâmica própria e específica ao lado da reprodução de elementos gerais comuns a todas as esferas sociais. Esse processo ocorre também no caso da subesfera sociológica. A chamada “sociologia crítica” pode ser melhor compreendida através da análise da dinâmica interna da subesfera sociológica e da dinâmica externa, através da análise da produção sociológica e suas determinações sociais.
O termo “sociologia crítica” é de uso tradicional no interior do pensamento sociológico. Ele marca um campo que aglutina determinadas tendências no interior da sociologia e marca uma oposição entre duas formas de conceber e praticar a sociologia: uma que seria eminentemente “crítica” e outra que não possuiria tal caráter. Esta oposição, no fundo, está presente na esfera científica em geral, especialmente nas ciências humanas, apesar de nem sempre se manifestar através destes termos, o que ocorre na subesferas sociológica e geográfica, mas não em outros casos.
O termo crítica é usado em vários sentidos. Para qualificar o que se convencionou denominar sociologia crítica é preciso entender esta expressão nos próprios termos desta tendência. Segundo Martins, “a formação e o desenvolvimento do conhecimento sociológico crítico e negador da sociedade capitalista sem dúvida liga-se à tradição do pensamento socialista, que encontra em Marx (1818-1883) e Engels (1820-1903) a sua elaboração mais expressiva” (MARTINS, 1998, p. 52). Assim, tal como no caso da geografia crítica, a sociologia crítica se confunde com o marxismo, pelo menos num primeiro momento e de forma mais permanente.
Qual o significado do conceito de crítica no pensamento marxista? Não buscaremos reconstituir a gênese deste conceito em Marx, tal como alguns fizeram (ASSOUN e RAULET, 1981) e sim apresentar sinteticamente o seu significado. Para Marx, a crítica não é um objetivo em si mesmo, ela é o pressuposto de algo, não é um fim, mas um meio. Para descobrir a função da crítica é preciso compreender sua estrutura e seu fundamento. A sua estrutura é a superação, seja da inversão da realidade (ideologia, entendida como sistema de pensamento ilusório), seja da realidade que produz esta inversão (modo de produção fundado na divisão de classes e exploração). Essa superação revela o seu objetivo: a transformação social. Porém, como a crítica não é um objetivo em si mesmo, ela também não pode surgir do nada, ela deve ser expressão de algo que seja a superação prática da realidade existente e seu prolongamento ilusório. A superação prática do capitalismo se materializa no proletariado, tal como Marx afirmará em suas obras (MARX, 1988). Em síntese, a crítica é um projeto de superação das ideologias e ilusões e da realidade social que as produz cujo objetivo é expressar a perspectiva do proletariado e contribuir com a transformação social (MARX, 1978).
Neste sentido, Martins está correto em dizer que Marx e Engels, “não estavam preocupados em fundar a sociologia como disciplina científica” (MARTINS, 1998, p. 52). Eles buscavam uma concepção crítica e totalizante da realidade social e por isso não dividiam o saber em compartimentos e nem a realidade e assim não trabalhavam com “disciplinas específicas”. Marx, diferentemente de Durkheim e Weber, não pretendia constituir a sociologia como ciência e sim levar a cabo o seu projeto crítico (VIANA, 2006). Assim, o que Marx elabora é uma teoria social, que engloba uma teoria da história e do capitalismo, que, no entanto, devido seu domínio temático se confundir com a da sociologia e sua influência na subesfera sociológica, ele se tornará um clássico da sociologia e considerado fundador da “sociologia crítica”. A teoria social de Marx, confundida com uma “sociologia crítica”, nasce, então, como um projeto de superação visando à transformação social, cujo objeto é simultaneamente a realidade social existente e suas manifestações intelectuais ilusórias, expressando a classe revolucionária de nossa época, o proletariado. E o caráter crítico do marxismo permitiu a sua influência em diversas outras subesferas científicas, sendo considerado sua “tendência crítica”.
Contudo, o termo “sociologia crítica” não é utilizado apenas no sentido marxista de “crítica”, que é o de uma crítica radical e totalizante que tem como finalidade a superação do capitalismo e a instauração da autogestão social ou comunismo. Desta forma, surgiram outras produções sociológicas que passaram a serem consideradas “sociologias críticas” e isso permite uma certa confusão. O nosso objetivo é observar a gênese e significado da sociologia crítica no interior da subesfera sociológica.
A ORIGEM DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
O surgimento da sociologia crítica ocorreu, como o surgimento das ciências humanas em geral, no século XIX, sendo o resultado da constituição e expansão das relações de produção capitalistas (revolução industrial) e da conquista do poder político pela burguesia (revoluções burguesas) que produzem novas questões e conflitos sociais, gerando tanto concepções conservadoras (Malthus, por exemplo, e o positivismo em geral) quanto filantrópicas e reformistas (socialismo utópico). Nesse contexto, também emerge o projeto de criação de uma “ciência positiva da sociedade” (Comte e, posteriormente, Durkheim) e a obra de Marx, que surge no bojo de novas tendências de pensamento da época, chamadas de “comunistas” e “anarquistas”.
Marx, partindo de uma síntese original e crítica da filosofia alemã, da economia política inglesa e do socialismo francês, elabora uma teoria da sociedade capitalista que terá grande influência na produção sociológica posterior. A obra de Marx não se limita a uma análise da sociedade capitalista, já que ele também desenvolveu, de forma menos aprofundada, uma teoria da evolução das sociedades humanas (entendida como sucessão de modos de produção) e vários estudos sobre as sociedades pré-capitalistas. Também desenvolveu o método dialético e diversas teses que seriam hoje chamadas “epistemológicas”, além de produzir diversas teses políticas em íntima relação com os demais aspectos de seu pensamento e com o desenvolvimento do movimento operário.
Não apresentaremos o conjunto da obra de Marx, o que demandaria um espaço enorme, mas apenas destacaremos os principais aspectos de seu projeto crítico, o que permite entender suas contribuições e sua influência posterior, bem como sua diferença em relação às demais tendências críticas no interior da sociologia. O primeiro ponto do projeto crítico de Marx é a crítica das ideologias e das representações ilusórias. A base desta crítica é a ideia da unidade entre ser e consciência (Marx não trabalhava com os termos abstratos, e que se tornaram hegemônicos posteriormente, de “sujeito” e “objeto”). A consciência nada mais é do que o ser consciente (MARX e ENGELS, 2002). Este ser consciente é histórico, concreto, social. Por isso, “não é a consciência que determina da vida, mas, ao contrário, é a vida que determina a consciência” (MARX, 1983), porquanto não existe uma consciência separada do ser humano. Este é um ser social e, por conseguinte, sua consciência também é social.
O ser humano só pode sobreviver e satisfazer suas necessidades básicas (comer, beber, habitar, reproduzir, etc.) através do trabalho e da cooperação (associação) com outros seres humanos, que se tornam, posteriormente, necessidades humanas. Com a emergência da sociedade de classes e ampliação da divisão social do trabalho, os seres humanos passam a desenvolver atividades limitadas, bem como relações entre si e com a natureza também limitadas. O trabalho deixa de ser uma necessidade humana e passa a ser apenas um meio, transforma-se em trabalho alienado. Derivado dessa divisão social do trabalho, emergem interesses, valores, concepções, que geram representações limitadas, ilusórias.
Aqui temos a base para o surgimento da falsa consciência e da ideologia. A divisão social do trabalho e a posição dos indivíduos nessa divisão expressam relações sociais limitadas e interesses antagônicos, sendo que “as ideias dominantes são as ideias da classe dominante” (MARX e ENGELS, 1988). Isto ocorre pelo fato de que a classe dominante possui os meios de produção intelectuais e confirma, através da naturalização, as relações sociais existentes, ao mesmo que tempo que suas ideias são confirmadas por estas mesmas relações. Esta é uma parte importante da “sociologia do conhecimento” de Marx (LEFEBVRE, 1979). Isto revela um dos aspectos principais do projeto crítico de Marx: a crítica das representações ilusórias e da ideologia, que será completada com seu estudo posterior do “fetichismo da mercadoria”.
A partir do momento do surgimento das classes sociais, a história da humanidade passa a ser a “história das lutas de classes” (MARX e ENGELS, 1988). A luta de classes tem como fundamento o processo de exploração que a classe dominante realiza sobre a classe dominada no processo de produção material, ou seja, no modo de produção e reprodução da vida material. Este aspecto coloca em evidência outro elemento importante do projeto crítico de Marx: a crítica da exploração e suas consequências, que gera uma crítica global do conjunto das relações sociais, especialmente na sociedade capitalista.
Na sociedade capitalista, o processo de exploração assume a forma de extração de mais-valor, ou seja, através da execução de um sobretrabalho pelo proletário que proporciona um trabalho excedente apropriado pelo capitalista. Isto produz as duas classes sociais fundamentais do capitalismo e suas lutas que revelam a tendência de sua dissolução e a possibilidade da transformação social via revolução proletária (MARX, 1988). O projeto crítico de Marx recebe aqui mais uma de suas características: a necessidade da transformação social via ação revolucionária do proletariado, o que gera a emancipação humana em geral, já que significa a dissolução geral das classes sociais.
Obviamente que estes aspectos envolvem diversas outras questões e foram aqui extremamente resumidos. Esta exposição esquemática teve o objetivo apenas de levantar alguns aspectos básicos do projeto crítico de Marx, que são importantes para compreender os seus desdobramentos metodológicos.
A teoria social de Marx, essencialmente crítica, surgiu na época de nascimento das ciências humanas, período marcado pelo cientificismo e proliferação de novas “ciências”, desde a “ideologia” (ciência das ideias) de Cabanis e Destutt de Tracy, até a “polemologia” (ciência da guerra), para citar apenas duas tentativas natimortas. A sociologia emerge nesse momento histórico através de Comte e com o objetivo claro de manifestar no caso específico do “estudo da sociedade” a função das esferas sociais: a reprodução do capitalismo.
A sociologia nasce conservadora e como expressão da burguesia vitoriosa (após as revoluções burguesas), se inspirando nas ciências naturais e se legitimando através da imitação delas (marcadas pela credibilidade e status de saber superior, suplantando a teologia e a filosofia). Esse duplo processo, marcado pela formação da apologia do capitalismo expresso pela sociologia (de Comte, Durkheim, Tarde, etc.), produção ideológica, e da crítica do capitalismo, que marca a emergência da teoria como “utopia concreta”, ou seja, o marxismo. Desta forma, a crítica da sociedade capitalista, acaba sendo entendida como “sociologia crítica”, apesar de ser muito mais uma crítica da sociologia (e da ciência em geral). As raízes da teoria social de Marx, supostamente uma “sociologia crítica”, deriva da emergência do proletariado e suas lutas, bem como a emergência da subesfera sociológica é derivada das necessidades da burguesia como nova classe dominante aquartelada no aparato estatal. Ou seja, tanto a sociologia quanto a crítica da sociologia são produtos derivados da luta de classes. O desenvolvimento da utopia e da ideologia é expressão desse processo e contexto. Marx não era um integrante da subesfera sociológica, mas os sociólogos conservadores sim, já que a grande ambição dos pioneiros (desde Comte) é a produção de uma nova ciência, o que foi sistematizado e consolidado por Durkheim e Weber.
O DESENVOLVIMENTO DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
Após a obra original de Marx e seu impacto sobre as lutas sociais e subesfera sociológica, emerge a chamada sociologia crítica. Essa é uma verdadeira “sociologia crítica”, pois emergiu no interior da subesfera sociológica. Segundo Martins,
pensadores como Korsch, Lukács e os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, como Adorno, Horkheimer, Marcuse, forneceram uma importante contribuição ao estudo crítico da sociologia e da sociedade capitalista. Em geral, estes pensadores rejeitaram a ideia do marxismo como ciência positiva da sociedade, ou seja, como “Sociologia”, tal como esta ciência fora imaginada pelo positivismo. Lukács, em seu trabalho ‘História e Consciência de Classe’, concebeu o marxismo como uma ‘filosofia crítica’ que expressava a visão de mundo do proletariado revolucionário. Os pensadores da ‘Escola de Frankfurt’ também desenvolveram uma concepção do marxismo como ‘filosofia crítica’, bastante diferenciada, segundo eles, do positivismo sociológico. O marxismo, nas mãos dos membros da Escola de Frankfurt’, foi colocado fora da política partidária, assumindo um caráter de crítica geral da cultura burguesa, dirigida principalmente a um público constituído em sua grande maioria por estudantes e intelectuais (MARTINS, 1998, p. 91-92).
Assim, a sociologia crítica após Marx manteve-se viva graças à sua influência e depois da Segunda Guerra Mundial recebeu várias contribuições, tal como a da Escola de Frankfurt, mas também de sociólogos como Henri Lefebvre, Lucien Goldmann, Zygmunt Bauman (em seu período “marxista”), entre outros. Essa sociologia crítica genérica, pois mais global e influenciada pela concepção marxista da totalidade, possui uma tendência de influência marxista mais “pura” (Lefebvre, Goldmann, Bauman) e outra mais eclética (Escola de Frankfurt, Análise Institucional). Porém, além desta sociologia crítica genérica, surgiu outra tendência que também foi rotulada ou se auto-intitulou de “crítica”[1], tal como Birbaun, Habermas, Wright Mills, Bottomore, Bourdieu, entre outros. Assim, poderíamos distinguir uma sociologia crítica genérica, de influência marxista, e uma de orientação contestadora de origem variada, constituindo uma sociologia crítica moderada.
Esta sociologia crítica produziu várias teses e análises que se tornaram “patrimônio sociológico” e que mantêm sua influência até hoje e outras ainda são produzidas atualmente. A Escola de Frankfurt produziu diversos estudos e teses fundamentais, cabendo destaque para a teoria da indústria cultural de Adorno e Horkheimer (1985), na qual realizam uma crítica aos meios de comunicação que transformam a cultura em mercadoria e promovem sua massificação e estandardização e a crítica da razão instrumental, expressa nas obras de Horkheimer (1976) e Marcuse (1988), que revela o processo de absorção e instrumentalização da razão no sentido de reproduzir a dominação capitalista. A sociologia de Henri Lefebvre, por sua vez, irá destacar, entre outros elementos, uma crítica total da “modernidade”, “última estratégia da contrarrevolução burguesa” (FAVRE e FAVRE, 1991), e da vida cotidiana na “sociedade burocrática de consumo dirigido” (LEFEBVRE, 1991) e do urbanismo como forma de dominação. Lucien Goldmann, além de discussões sobre sociologia e epistemologia (1978), desenvolverá análises sobre a consciência e estudos sobre cultura e sociologia da literatura. Bauman realizará uma forte crítica à própria sociologia, incluindo Durkheim, Weber e a sociologia fenomenológica, opondo “razão técnica” e “razão emancipadora” (BAUMAN, 1977).
A análise institucional, tendência que fica na fronteira entre subesfera sociológica e subesfera psicológica, representada por Georges Lapassade, René Lourau e outros, iniciam sua produção nos anos 1960 e no final dessa década e início da posterior apontam para uma concepção crítica da sociedade e propostas alternativas, como a autogestão pedagógica. No entanto, uma parte dos representantes dessa tendência era mais moderada e a microssociologia acabou se enfraquecendo por falta de uma presença mais forte da macrossociologia. Georges Lapassade (1989; 1975) e René Lourau (1975) realizaram análises interessantes sobre a burocracia e a autogestão, entre outros temas, bem como apontaram para uma concepção diferenciada da sociologia (1978) que era a dominante na época. O impacto da rebelião estudantil de Maio de 1968 aproximou esses autores da ideia de autogestão pedagógica e outros elementos interessantes de crítica da burocracia e retomada do pensamento de Marx e outros pensadores (Lukács, Sartre, Hegel, Freud, etc.).
Já a outra forma de sociologia crítica, que, apesar de ter semelhanças é bastante heterogênea, apresenta várias contribuições para a produção sociológica e por isso destacaremos Wright Mills e Pierre Bourdieu. Wright Mills realiza uma crítica da própria sociologia (mais especificamente a americana) ao criticar a “grande teoria” (funcionalismo) e o empirismo abstrato (quantitativismo) e prega o retorno ao “método artesanal” dos clássicos, especialmente Marx e Weber. Ressalta a importância da “imaginação sociológica”, termo impreciso segundo Moya (1970).
Bourdieu, representante da sociologia contemporânea, já produz uma sociologia bem mais ampla e complexa, possuindo uma base interpretativa da realidade contemporânea a partir de sua “teoria dos campos”, no qual, utilizando um conjunto de noções complementares e recebendo a influência dos clássicos da sociologia (Marx, Weber e Durkheim), acaba fazendo uma análise crítica da sociedade moderna, com destaque para seus estudos sobre a reprodução no campo educacional e sua crítica do fetichismo da arte oriundo do campo artístico, além de suas contribuições ao estudo do campo político, jurídico, científico, entre outros (PINTO, 2000). Devido ao fato de ter produzido uma sociologia sistematizada trabalhando análise da sociedade moderna e questões metodológicas, adentrando também para questões de técnica de pesquisa, tal como sua crítica à pretensa neutralidade das técnicas de pesquisa, conseguiu exercer uma enorme influência na sociologia contemporânea e até mesmo em outras ciências humanas.
Sem dúvida, outros nomes e contribuições poderiam ser citadas, tal como Giddens em sua obra introdutória à sociologia (GIDDENS, 1984), e diversos sociólogos influenciados pelo marxismo ou declaradamente marxistas, mas seria uma lista enorme e que demandaria muito tempo e espaço para apresentar. Neste sentido, consideramos que este breve resumo oferece um pequeno apanhado geral do desenvolvimento da sociologia crítica.
OS LIMITES DA SOCIOLOGIA CRÍTICA
Resta, após essa breve descrição da sociologia crítica, a análise de suas determinações e relação com a subesfera sociológica. A sociologia crítica emergente após a Segunda Guerra Mundial traz a marca da nova fase do capitalismo, comandado pelo regime de acumulação conjugado. Esse novo regime de acumulação gera a tentativa de integração do proletariado no capitalismo, tendo em vista as tentativas de revoluções no período anterior. O estado integracionista (chamado de “bem estar social”) cumpre um papel fundamental nesse processo e, ao lado do fordismo e da exploração internacional via capital oligopolista transnacional, realiza um processo de cooptação dos partidos social-democratas e comunistas, bem como de sindicatos, que, ao lado da estabilidade política e financeira e da emergência da “sociedade de consumo”, amortece as lutas de classes e diminui a possibilidade de radicalização proletária. A teoria social de Marx expressava o proletariado que realizava uma ampla luta que assustava a burguesia. A chamada “sociologia crítica” que emerge no regime de acumulação conjugado já não tem essa base revolucionária, o que explica o pessimismo de uns (Adorno, Marcuse, etc.) e a moderação de outros (Wright Mills, Birbaun, etc.).
No entanto, existem elementos internos da própria subesfera sociológica que ajuda a explicar esse processo. A sociologia nasceu durante o regime de acumulação intensivo, mas foi progressivamente se institucionalizando e especializando, inicialmente e principalmente nos Estados Unidos (VIANA, 2006). Isso garantiu o seu processo de crescente conservadorismo e a estabilidade do capitalismo oligopolista transnacional garantiu as condições para que a tendência hegemônica conservadora reinasse absoluta na sociologia. A sociologia crítica continuou existindo, mas com cada vez menos criticidade. A classe intelectual, da qual os sociólogos fazem parte, traz no seu interior alguns descontentes, por razões variadas, e estes realizam uma certa crítica, que, no entanto, fica muito aquém da crítica radical e totalizante que Marx efetivou. Essa sociologia crítica genérica encontrou um forte obstáculo para o seu desenvolvimento, que foi a deformação do pensamento de Marx pelo leninismo e semelhantes. Assim, Marx visto pela ótica leninista acaba se tornando uma caricatura. A influência leninista é perceptível em Lucien Goldmann e Henri Lefebvre, inclusive na interpretação deformada do pensamento de Marx.
A existência da sociologia crítica genérica representada pela Escola de Frankfurt é derivada da forte influência marxista na época de fundação do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, que contava como Karl Korsch, Georg Lukács, Erich Fromm, etc. e do impacto da ascensão do nazifascismo. Essa é a raiz da oposição entre a sociologia crítica frankfurtiana e a sociologia positivista norte-americana. A produção de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros é marcada por um certo pessimismo, oriundo da suposta integração da classe operária no capitalismo e ascensão de uma sociedade marcada pelo integracionismo, enfraquecendo as formas de oposição[2]. Os frankfurtianos eram de uma geração anterior, cujos valores e concepções não se encaixavam no capitalismo oligopolista transnacional. Além disso, os frankfurtianos já possuíam, na esfera científica, um espaço reservado e um reconhecimento, o que lhes permitia maior autonomia. Assim, eles poderiam ser considerados intelectuais dissidentes cuja criticidade não estava vinculada à uma perspectiva proletária.
A outra ala da sociologia crítica genérica se encontrava em outra situação. Henri Lefebvre era um caso exemplar, pois o seu reconhecimento foi muito limitado. Ele num primeiro momento se aliou ao existencialismo hegemônico, mas logo se deslocou para o leninismo e se integrou no Partido Comunista Francês, até sua expulsão. Isso lhe gerou um isolamento, pois permanecia tendo Marx como principal referência e a hegemonia existencialista foi substituída pela estruturalista. Assim, Lefebvre foi um dos críticos do estruturalismo e assim permaneceu. A sua crítica da sociedade capitalista aparentemente é marxista, mas acaba demonstrando uma incompreensão parcial tanto do capitalismo quanto da teoria do capitalismo de Marx (LEFEBVRE, 1979; LEFEBVRE, 1977). É por isso que Lefebvre pode ser considerado um intelectual engajado, mas que devido seu processo histórico de vida e formação intelectual, não conseguiu superar certos limites de uma posição rebelde e semiproletária.
Esse é o caso semelhante dos integrantes da chamada “análise institucional” (Georges Lapassade, René Lourau, Michel Lobrot, etc.). Estes avançaram no sentido do rompimento com o pseudomarxismo dos partidos políticos e a recuperação do pensamento de Marx, mas as suas soluções ainda eram problemáticas, pois focalizaram mais a via educacional e institucional. Contudo, foram os que mais desenvolveram uma sociologia crítica que inovou e ampliou o espaço analítico para novas áreas. Assim, essa sociologia crítica genérica é realizada por intelectuais engajados que não ultrapassaram o nível da rebeldia[3].
A sociologia crítica moderada, por sua vez, é produto do isolamento e hegemonia no interior da subesfera sociológica. Um testemunho magistral desse processo é a obra de Wright Mills, A Imaginação Sociológica. Wright Mills era um intelectual dissidente e marginalizado na subesfera sociológica, apesar de todo o espaço que conseguiu, mas com o passar do tempo e sem se tornar um hegemônico consagrado como Talcott Parsons e Robert Merton. A sua obra é uma crítica tanto ao que ele denominou “grande teoria” quanto ao “empirismo abstrato”, as duas tendências hegemônicas na sociologia norte-americana na época em que escreveu sua obra. Como um intelectual dissidente, ele se aproximou de outros dissidentes, engajados e ambíguos, realizando uma crítica dos hegemônicos na subesfera sociológica e apresentando elementos críticos (moderados) da sociedade moderna e norte-americana.
Um caso semelhante é o de Pierre Bourdieu. Este surge como uma intelectual dissidente, e ao lado de alguns ambíguos e engajados, realiza a crítica do estruturalismo hegemônico, no caso francês, e lança as bases de sua proposta sociológica, o seu “projeto original”. Com a crise do estruturalismo após o Maio de 1968, Bourdieu conseguiu passar de dissidente para hegemônico e se tornou uma das grandes referências da sociologia francesa e mundial.
No entanto, o seu reinado durou pouco. A crise do regime de acumulação conjugado no final dos anos 1960 abriu uma brecha representada pela crise do estruturalismo e outras ideologias influentes, e isso permitiu um período de incertezas e processos de busca de alternativas, o que permitiu a emergência de novas ideologias (pós-estruturalismo), novas análises críticas (tal como a análise institucional de Lapassade e Lourau) e retomada do marxismo autêntico, bem como do leninismo. Bourdieu ganhou espaço graças a essa brecha e ao fato de que sua sociologia crítica era reprodutivista e, por conseguinte, mais aceitável, o que permitiu ele se tornar hegemônico.
Assim, tal como ele mesmo afirmava em sua sociologia dos campos, os dominados usam a estratégia da crítica (e Bourdieu realizou a crítica do estruturalismo) e os dominantes a estratégia da conservação. Ao se tornar hegemônico, a crítica da subesfera sociológica e da esfera científica é minimizada[4]. Tão logo ele vai perdendo espaço para a nova hegemonia pós-estruturalista, expressão do regime de acumulação integral, ele retorna à sua estratégia da crítica, buscando inclusive se aliar com ambíguos e outros[5].
Assim, a sociologia crítica moderada era realizada geralmente por sociólogos dissidentes em sua competição com os hegemônicos. Esse processo explica a moderação da crítica em diversos intelectuais dissidentes, tais como Bourdieu, Wright Mills, etc. A sociologia crítica genérica se mantinha ao lado da moderada, às vezes se unindo no combate aos hegemônicos, às vezes se criticando mutuamente. O que explica essa sociologia crítica durante o regime de acumulação conjugado e a transição para o regime de acumulação integral é a dinâmica da luta de classes e a dinâmica interna das próprias esferas sociais, intimamente relacionadas. A consolidação do regime de acumulação conjugado na França gerou a hegemonia estruturalista e esta foi alvo de crítica tanto de dissidentes (Bourdieu), ambíguos (Garaudy) e engajados (Lefebvre). Uma vez que tal regime de acumulação entra em crise, o estruturalismo é suplantado por novas correntes hegemônicas, sendo o pós-estruturalismo a grande alternativa que, no entanto, só se tornará efetivamente hegemônico com a emergência do regime de acumulação integral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da sociologia crítica aqui desenvolvida aponta para a conclusão que sua explicação parte da análise das mudanças sociais em geral, da luta de classes, e da dinâmica interna da subesfera sociológica. Assim, a compreensão fundada apenas no processo global de luta de classes pode gerar incompreensão, tal como a análise localizada apenas na subesfera. Há um entrelaçamento entre luta de classes e disputa subesférica e nesse processo um nível de compreensão mais profundo e concreto é conquistado pela análise que leva isso em consideração. O que realizamos aqui foi um esboço de tal processo analítico, no caso específico da subesfera sociológica, visando explicar a emergência de uma crítica radical e totalizadora, com a obra de Marx, e sua substituição por algumas sociologias críticas bem mais limitadas e como isso é explicado pela dinâmica da luta de classes e da disputa subesférica.

REFERÊNCIAS

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5zR2ZL49




[1] Aqui deixaremos de lado outra tendência, que Swingewood (1978) denominou “radical” (Szymanski, Gouldner), pois esta se diferenciaria, segundo este autor, tanto da sociologia “marxista”, quanto da nova sociologia crítica emergente e representada por Birbaun, entre outros.
[2] Essa ideia foi exposta de forma mais cristalina por Herbert Marcuse (1986), com sua tese da “sociedade unidimensional”, bem como pelo seu complemento, o “pensamento unidimensional”.
[3] O caso de Lucien Goldmann é um pouco diferenciado, bem como o de Roger Garaudy e diversos outros (tanto sociólogos quanto de outras subesferas). Nesse caso, trata-se de intelectuais ambíguos e que por isso realizavam um tipo de crítica conciliadora da esfera científica e subesfera sociológica.
[4] A crítica que realizou nesse período é devido à competição no interior da subesfera sociológica e esfera científica, tal como sua oposição a Alain Touraine, um de seus grandes rivais, e o filósofo Sartre, que apesar de não ser da subesfera sociológica, tinha influência no seu interior e defendia a figura do intelectual engajado e oferecia uma concepção crítica e influenciada pelo marxismo.
[5] Isso pode ser vista em seus textos de crítica ao neoliberalismo, multiculturalismo, imperialismo, etc. (BOURDIEU, 1998; BOURDIEU e WACQUANT, 2001).
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Publicado originalmente em:
XXII SIMPÓSIO DE ESTUDOS E PESQUISAS DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Ciencia e Formação: Utopias e Desencantosl
ST 22- Utopia e ideologia na dinâmica da esfera científica

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