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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Mesa Redonda: O Dilema da formação na contemporaneidade

Seminário Heranças da Revolução Russa - IFG




Heranças da Revolução Russa
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A ALIENAÇÃO COMO RELAÇÃO SOCIAL


A ALIENAÇÃO COMO RELAÇÃO SOCIAL

Nildo Viana*

RESUMO
A palavra alienação possui vários sentidos. O artigo visa recuperar o conceito marxista de alienação. A partir das contribuições de Marx e outros autores, a alienação é compreendida como sendo fundamentalmente uma relação social de heterogestão, ou seja, ela remete a uma situação de controle por outro. A alienação, por sua vez, gera o alheamento, que é a perda da posse ou propriedade, e o fetichismo (ou estranhamento). O elemento fundamental para entender a alienação e sua generalização é o conceito de trabalho alienado. No capitalismo, o trabalho alienado assume forma específica, através da produção capitalista de mercadorias via extração de mais-valor, o que gera o fetichismo da mercadoria e generalização de ambos na sociedade moderna.
Palavras-chave: alienação, alheamento, fetichismo da mercadoria, classe social, trabalho alienado.

ABSTRACT:
The word alienation has several meanings. The article seeks to recover the Marxist concept of alienation. From the contributions of Marx and other authors, the alienation is understood as being fundamentally a social relation of hetero, that is, it refers to a situation of control by another. Alienation, in turn, creates alienation, which is loss of possession or ownership, and fetishism (or estrangement). The key element to understand the alienation and its generalization is the concept of alienated labor. In capitalism, alienated labor takes specific form by capitalist commodity production through extraction of surplus value, which creates commodity fetishism and generalization of both in modern society.
Keywords: alienation, dispossession, commodity fetishism, social class, alienated labor.

A palavra alienação é utilizada em vários sentidos. Tal palavra possui um sentido jurídico, um sentido filosófico, um sentido psiquiátrico, entre outros. O termo alienação acabou entrando para o vocabulário das pessoas não familiarizadas com o trabalho intelectual profissional, no mundo das representações cotidianas, e é utilizada no cotidiano como se fosse sinônimo de “estar fora da realidade”. Esta concepção popular da palavra é bem próxima ao sentido psiquiátrico do termo. Na psiquiatria, a palavra alienação significa quase o mesmo que loucura. Isto é bastante evidente, principalmente se observarmos a história da psiquiatria e vermos que o psiquiatra já se chamou “alienista”, ou seja, aquele que trata de alienados.
No sentido jurídico do termo, o ato de alienação é sempre um ato de perda de propriedade. Alienar um imóvel significa transferi-lo a outro, ou seja, torná-lo propriedade de outro. Esta é a concepção que ficou mais popular depois da anterior, graças a uma vulgarização do marxismo, e assim o conceito marxista de alienação foi reduzido a uma questão de perda da propriedade dos meios de produção. O sentido filosófico do termo alienação varia de acordo com o sistema filosófico no qual é inserido, sendo que na maioria deles, ele é entendido como um problema da consciência, ou, em outras palavras, tal como no sistema filosófico de Hegel, como problema da atividade mental.
Podemos dizer, esquematicamente, que o sentido atribuído ao termo alienação que o concebe como sendo um problema restrito ao âmbito da consciência ou da mente humana (expresso pelas concepções psiquiátrica, filosófica e popular), bem como o sentido que o compreende como sendo perda de propriedade (expresso pela concepção jurídica e pseudomarxista[1]) abordam apenas aspectos dos fenômenos – sendo, pois, limitados, e são explicados e englobados pela teoria marxista da alienação.
Embora todas estas definições do termo alienação carreguem aspectos verdadeiros, como veremos no decorrer deste artigo, o fundamental do fenômeno da alienação não está presente. A análise clássica da alienação e que lhe consegue explicar é a de Karl Marx. Na teoria da história e da sociedade de Marx, a alienação é um dos conceitos fundamentais. A alienação forma a base de toda teoria marxista das sociedades divididas em classes sociais. A nosso ver, esta é a análise mais apropriada para se compreender o fenômeno da alienação, e, como veremos mais à frente, carrega aspectos presentes e outras definições, embora lhe dando um fundamento explicativo não encontrado nas outras abordagens.
Ocorre, porém, que após Marx, muitos daqueles que se pretendem seguidores e/ou continuadores deste teórico, mutilaram o conceito de alienação e retomaram a perspectiva filosófica ou jurídica. Neste contexto, o conceito de alienação está envolvido numa forte polêmica, envolvendo filósofos, sociólogos, “marxistas”, entre outros. O nosso objetivo, aqui, é retomar a concepção de alienação de Marx e, a partir disso, apresentar a contribuição desse conceito para a compreensão da sociedade capitalista contemporânea.
O TRABALHO ALIENADO
O fenômeno da alienação remete ao problema da natureza humana na história da humanidade. A natureza humana sempre foi objeto de polêmicas no decorrer da história da filosofia e das ideias sociais. Cada filósofo, pensador, cientista, etc., defendia uma certa definição do que entendia sobre natureza humana. Hoje em dia, alguns pensadores, os ideólogos do anti-humanismo, questionam a existência de uma “natureza humana” ou uma “essência humana”. Por isto, iniciaremos com uma discussão sobre esse assunto, e, após isto, abordaremos o tema da alienação, pois a compreensão deste fenômeno não é possível sem a compreensão da natureza humana.
Para Aristóteles (1988), o “homem” é um animal político, ou seja, é um animal social, aquele que vive na polis (cidade-estado grega). A instituição das cidades-estado gregas e a vida social e política existente, eram tomadas por Aristóteles como sendo eternas e imutáveis. O ser humano tal como existia na sociedade grega se tornou, para Aristóteles, o modelo de natureza humana. Da mesma forma, em todas as épocas, a maioria dos pensadores toma o indivíduo determinado pelo conjunto das relações sociais de sua sociedade como o modelo de natureza humana. Tal concepção ideológica só foi superada com a análise de Marx sobre a verdadeira essência humana.
Marx não quis definir o homem como um “animal político”, como um “animal racional”, pois tais concepções são unilaterais, já que definem o ser humano por uma atividade unilateral e isolada das demais ao invés de defini-lo por sua totalidade. O ser humano não pode ser definido por uma atividade isolada e sim pela totalidade de suas atividades. Ocorre, porém, que as atividades concretas dos seres humanos são diferentes e por isso é difícil definir a natureza humana a partir delas. Mas isto se torna possível quando ao invés de somar as atividades concretas para chegar à totalidade das atividades se observa o que existe de comum em todas elas. A totalidade em questão não é, portanto, a totalidade das atividades concretas e sim a totalidade dos seus elementos essenciais.
Os animais também executam atividades. Estas atividades também são concretas. A partir, então, da distinção entre atividade humana e atividade animal podemos descobrir o que caracteriza e define a primeira. É isto que faz Marx quando ele diz que “a atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais: só por esta razão ele é um ente-espécie” (Marx, 1983, p. 96).
Logo, a atividade humana se distingue da atividade animal porque ela é consciente. O ser humano é um ser autoconsciente. Isto não é a mesma coisa que dizer que o homem é um animal racional, pois o que o distingue dos outros animais não é somente a consciência e sim o fato de sua atividade ser consciente. A forma de trabalho que é própria do ser humano foi assim descrita por Marx:
“Uma aranha executa operações semelhantes à do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, com lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim, que se manifesta como mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais” (K. Marx, 1988, p.142-143).
Portanto, o trabalho humano possui um caráter teleológico consciente, ou seja, possui uma finalidade consciente e esta é a sua essência: unidade entre atividade e finalidade. É isto que define a natureza humana. O ser humano é um ser ativo, consciente, e teleológico*, o que equivale dizer que ele se define pelo que faz e pelo desejo de fazer.
Desta forma, podemos dizer que a atividade que possui um caráter teleológico consciente, ou seja, que possui uma finalidade consciente, é a manifestação da natureza humana. Para Marx, atividade e trabalho significam a mesma coisa. Esta forma de atividade ou trabalho significa uma objetivação do ser humano. O que significa isto? É o que explicaremos a seguir.
A objetivação significa que o ser humano manifesta sua natureza, sua essência no mundo que ele mesmo constrói. Neste sentido, objetivação é humanização, tanto do meio ambiente por ele trabalhado quanto da sociedade por ele produzida. O ser humano, ao produzir, transfere-se ao produto do seu trabalho, se “objetiva”, ou seja, remete ao “mundo exterior” o que é expressão do seu “mundo interior”. Este trabalho é realizado não pelo indivíduo isolado, que não poderia se relacionar sozinho com o meio ambiente (a natureza) devido às suas limitações e sim através de uma associação com outros seres humanos. É na associação que o ser humano manifesta sua natureza e como o ser humano só existe no interior de uma associação de seres humanos, ele deve ser considerado também um ser social.
O trabalho como objetivação também é chamado de práxis. A práxis é o modo próprio do ser humano se realizar e manifestar sua essência. Práxis é uma atividade consciente do ser humano, onde ele coloca uma finalidade que não nega sua natureza, ao contrário, a confirma, e assim é a forma própria do ser humano viver, estando livre das coerções sociais.
Assim, a práxis ou o trabalho como objetivação, significa a manifestação da natureza humana, a realização do ser humano. Isto só pode ocorrer no interior de uma associação livre dos seres humanos, ou seja, sem haver qualquer relação de dominação entre os seres humanos. A história da humanidade, porém, não é marcada por um progressivo processo de realização do ser humano, mas, ao contrário, demonstra, de fato, a não-realização do ser humano. O que impede esta realização? A resposta é evidente: a alienação.
A alienação surge com a ascensão da sociedade de classes. As sociedades divididas em classes sociais são fundamentadas no trabalho alienado[2]. Isto ocorre devido ao fato de que a atividade vital consciente, a práxis ou o trabalho como objetivação, perde seu caráter teleológico consciente e passa a ser apenas um meio para a satisfação de outras necessidades.
A partir do momento em que o ser humano satisfez suas necessidades primárias (comer, beber, dormir, amar), ele criou novas necessidades. A objetivação passou a ser uma necessidade humana. Mas no momento histórico em que surge a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas, o trabalho deixa de ser objetivação e passa a ser alienação, deixa de ser uma necessidade para se tornar apenas um meio para a satisfação de outras necessidades. A sociedade humana deixa de ser uma forma de associação igualitária entre os seres humanos e passa a ser uma instituição dividida, antagônica, onde surgem grupos humanos que possuem interesses e posições sociais diferentes, que são as classes sociais, onde uma classe não só possui interesses e posições sociais diferentes como também antagônicas, já que emerge a partir da exploração de uma sobre a outra. Aliás, é isto que produz os interesses diferentes entre as classes sociais.
É quando surge a divisão da sociedade em classes sociais que o trabalho deixa de ser uma autoatividade e passa a ser trabalho alienado. Marx afirmou, em seu livro A Ideologia Alemã, que a única relação que os indivíduos ainda mantém com os meios de produção e com o seu próprio trabalho “perdeu para eles toda aparência de autoatividade e só conserva sua vida atrofiando-a”. Em períodos anteriores, ou seja, nas sociedades pré-classistas, ao contrário,
“a autoatividade e a produção da vida material estavam separadas pelo fato de recaírem sobre pessoas distintas, e enquanto que a produção da vida material, pela limitação dos próprios indivíduos, valia ainda como uma modalidade de autoatividade, agora estes dois aspectos se desmembram de tal forma que a vida material aparece como a finalidade, e o criador desta vida material, o trabalho (agora a única forma possível, mas negativa, da autoatividade) aparece como meio” (Marx e Engels, 1991, p. 47).
O trabalho deixa de ser necessidade para ser meio de satisfação de outras necessidades. Quais as razões disto? Com o aprofundamento da divisão social do trabalho e o surgimento das classes sociais ocorre o seguinte processo: a produção material da sociedade era uma produção coletiva e que gerava uma apropriação coletiva dos bens produzidos e isto se rompe com o surgimento das classes sociais (senhor de escravos x escravos), pois uma classe social (a classe dominante) passa a dirigir o processo de trabalho executado pela outra (a classe produtora) e, devido a isto, passa a dirigir o processo de distribuição dos bens produzidos, adquirindo para si a maior parte dos bens e cedendo para a outra classe os meios necessários para sua sobrevivência, ou seja, para que ela continue a trabalhar em benefício da classe dominante.
Em suma, a origem das classes sociais remete ao processo de constituição do trabalho alienado. A classe produtora, formada pelos trabalhadores produtivos, não executa o trabalho como objetivação, pois ela é dirigida pela classe dominante. É por isto que, para os membros da classe produtora e explorada, o trabalho deixa de ser uma necessidade. Se ele deixa de ser uma necessidade, qual é o motivo que faz com que eles continuem trabalhando? O motivo se encontra no fato de que eles só terão acesso aos meios de sobrevivência por intermédio do trabalho. O trabalho torna-se um meio de satisfação de outras necessidades e, por conseguinte, alienação.
Em síntese, podemos dizer que a alienação se caracteriza pela heterogestão e o trabalho alienado pela direção do não-trabalhador sobre o trabalho do produtor. Portanto, a alienação é uma relação social específica, marcada pela direção de um ser humano sobre outro e o trabalho alienado é caracterizado pelo domínio do não-trabalhador sobre o trabalhador no processo de produção. Por conseguinte, a alienação não é um processo que ocorre no mundo da consciência, embora provoque efeitos sobre este, e sim uma relação social. A partir disto também se conclui que a alienação é heterogestão.
Contudo, na abordagem de Marx, o elemento fundamental é o trabalho alienado. Isso se deve ao fato de que é graças ao trabalho alienado que emerge a propriedade privada e as duas classes fundamentais em um determinado modo de produção. Por isso, o foco de Marx é o trabalho produtivo, embora ele se generalize para outras formas de trabalho e atividade. O conceito de trabalho produtivo remete, nas sociedades pré-capitalistas, ao trabalho que produz bens materiais e, no capitalismo, ao trabalho que produz bens materiais que gera mais-valor (Viana, 2012)[3].
Se a alienação é um processo que transforma o trabalho de forma negativa, deixando de ser práxis, autoatividade ou objetivação, para ser mero meio de satisfação de outras necessidades, o que isto significa para a natureza humana? Assim como o trabalho alienado retira do ser humano o controle do seu trabalho, ele retira do trabalho seu caráter humano. A motivação do trabalho animal é o instinto, enquanto que a motivação do trabalho humano é a finalidade consciente que o ser humano coloca nele visando satisfazer suas necessidades e ele mesmo se torna uma necessidade humana (Marx e Engels, 1991). Mas, uma vez que o trabalho deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser apenas um meio de satisfação de outras necessidades, então ele perde seu caráter humano. De manifestação da natureza humana, o trabalho passa a ser sua negação. Enfim, a alienação é a negação da natureza humana. Ninguém expressou isto de forma mais clara que Marx:
“O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e, por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas, mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato de, logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem se aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo, mas trabalho para outrem. Por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo, mas sim a outra pessoa” (K. Marx, 1983, p. 93).
O trabalhador nega-se a si mesmo no trabalho alienado. Só lhe resta a exaustão, o sofrimento, a dor. A alienação é a negação da essência humana, da espécie humana. Se a natureza humana se manifesta através do trabalho que possui um caráter teleológico consciente, então o trabalho alienado nega a natureza humana, pois impede tal manifestação. Ao negar a natureza humana, a alienação também nega a natureza em geral, pois o ser humano é parte da natureza. Nega, também, a espécie humana, pois a natureza humana está presente em todos os indivíduos da espécie e negar justamente a essência dos seres humanos significa negar a espécie humana como um todo. A negação da essência humana significa negar a sociabilidade autêntica no processo do trabalho. O ser humano é um ser ativo e teleológico, mas social, realiza o trabalho através da cooperação e se realiza através da associação com os outros seres humanos (Marx e Engels, 1991). A alienação do trabalho perverte o ser humano e ao fazê-lo perverte a relação social dos indivíduos associados pela cooperação. Uma sociedade fundamentada na alienação é uma sociedade repressiva e coercitiva. Ela não corresponde à natureza humana e por isso existe a utopia, o projeto de uma sociedade que corresponda à natureza humana. Uma sociedade que vive sob o signo da alienação é uma sociedade desumana.
A natureza humana, entretanto, tem de se manifestar. O ser humano possui a necessidade de realizar sua essência. A alienação impede a realização do ser humano. Mas o que acontece com um ser humano que não tem suas necessidades satisfeitas? Segundo Marx, tal insatisfação de necessidades provocará o descontentamento e a negação da alienação. O trabalho alienado é visto, sentido e declarado como indesejável. O trabalhador foge do trabalho como o diabo foge da cruz (Marx, 1983). Surge, assim, a recusa da alienação por parte do trabalhador.
Esta recusa pode ser observada na história da humanidade. Tanto no plano das ideias quanto no plano da prática cotidiana, o trabalho alienado, que muitas vezes é confundido com o trabalho em geral, é negado. Muitas são as ideologias que colocam o trabalho como algo “perverso”, “indesejável”, etc. Na prática, o trabalho alienado sempre foi recusado pelas classes exploradas. Os escravos na Grécia antiga sempre se rebelaram e o mesmo ocorria com os servos na sociedade feudal na Idade Média e persiste em ocorrer em nossos dias, onde o trabalhador assalariado (tanto os produtivos quanto os improdutivos) nega constantemente o trabalho alienado ao qual está submetido, tal como se vê na história do capitalismo e na história do movimento operário, que é um movimento de negação do capitalismo e de afirmação de uma nova sociedade, sem classes sociais e, por conseguinte, sem alienação.
Mas Marx tratou da reação consciente do trabalhador frente à alienação. Com o surgimento da psicanálise, observa-se que existe outro tipo de reação: a inconsciente. Coube a psicanálise revelar os efeitos nocivos do trabalho alienado sobre o trabalhador (Schneider, 1977; Dejours, 1988). Quais são estes efeitos? Reações psicossomáticas e distúrbios psíquicos, ou seja, efeitos tanto físico-corporais quanto mentais. No limite mais extremo pode produzir até mesmo casos de desequilíbrios psíquicos (tal como a psicose). Tal descoberta é produto do desenvolvimento da consciência humana sobre o funcionamento do que Freud (1978), o fundador da psicanálise, chamou de “aparelho psíquico”. Neste se manifesta não apenas a consciência, mas também o inconsciente. Freud, na primeira fase de sua obra, dividiu o aparelho psíquico em princípio de realidade e princípio de prazer (posteriormente dividiria em id, ego e superego, mas assim como muitos psicanalistas contemporâneos, utilizaremos a primeira abordagem freudiana), onde o primeiro seria a manifestação da consciência humana, voltada para a satisfação das necessidades conscientes e para as exigências sociais e morais, e o segundo seria a manifestação do inconsciente, voltado para a satisfação dos desejos inconscientes do ser humano e que seriam reprimidos pela civilização repressiva.
Para Freud, esses desejos inconscientes seriam fundamentalmente desejos sexuais (Viana, 2008), mas para uma parte considerável dos psicanalistas contemporâneos, principalmente os influenciados pela teoria marxista, ultrapassam os desejos sexuais (que também estão presentes e se manifestam através do inconsciente, pois existe também uma repressão sexual que produz os desejos sexuais inconscientes). A repressão da natureza humana produz uma acumulação de desejos inconscientes na mente humana que representam os aspectos reprimidos desta natureza (que varia de acordo com a classe, o sexo, a raça, a idade, o indivíduo, a época, a sociedade, etc.).
Enfim, a alienação é negação da essência humana e, portanto, da humanidade. É claro que ela não atinge todas as classes sociais da mesma forma, mas a existência da alienação e sua generalização produzem efeitos nocivos em todos os indivíduos, pois em uma sociedade repressiva e coercitiva, marcada pelo antagonismo, ninguém pode escapar de seus conflitos e de suas consequências. Também podemos dizer que a alienação ultrapassa o marco delimitado do trabalho produtivo e hoje atinge todas as instâncias da vida social, tal como sempre ocorreu em todas as sociedades de classes.
Para compreender os efeitos do trabalho alienado sobre a consciência humana é necessário, em primeiro lugar, conhecer a reação do trabalhador submetido à alienação frente ao produto do seu trabalho. Ao recordarmos que o trabalho alienado é uma relação social específica que se desenvolve fundamentalmente no processo de trabalho, ou seja, nas relações de trabalho que envolvem seres humanos reais e concretos, na qual uns dirigem e dominam e outros são dirigidos e dominados, então podemos perceber que ele é heterogestão. É fundamental compreender isso para compreender a relação entre trabalhador e produto do trabalho e, consequentemente, a consciência que o primeiro tem do segundo no contexto do trabalho alienado.
Tal como colocamos anteriormente, o trabalho alienado se caracteriza pelo fato do trabalhador não possuir a direção do seu processo de trabalho e que neste processo ele é dirigido por outro. O não-trabalhador, que é quem dirige o processo de trabalho (o que é a mesma coisa que dizer que ele dirige o próprio trabalhador), e acaba assumindo o controle deste processo. Ao assumir o controle do processo do trabalho, da atividade de produção, assume, por conseguinte, o controle do produto que é produzido, ou em outras palavras, a propriedade. A base da propriedade privada está na heterogestão. O problema é que a maioria dos intérpretes de Marx entende que a alienação ocorre apenas na relação com o produto do trabalho. A alienação passa a ser definida como separação entre trabalhador e meios de produção, abolindo a questão fundamental do próprio processo de trabalho como alienação (ou, em casos piores, confundem alienação com fetichismo e transformam numa questão limitada ao âmbito da consciência). Alienação é heterogestão, relação social na qual alguns seres humanos controlam outros. A apropriação do produto é resultado disso. Ao não controlar a atividade, o trabalhador não controla o produto da atividade. A alienação da atividade proporciona a alienação do produto. Os intérpretes de Marx, devido a um conjunto de determinações (reprodução da interpretação dominante, valores, falta de leitura rigorosa, etc.) se limitaram ao problema do produto do trabalho. Tal como Marx coloca:
“Até aqui consideramos a alienação do trabalhador somente sob um aspecto, qual seja o de sua relação com os produtos de seu trabalho. Não obstante, a alienação aparece não só como resultado, mas também como processo de produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador ficar numa relação alienada com o produto de sua atividade se não se alienasse a si mesmo no próprio ato da produção? O produto é, de fato, apenas o résumé da atividade, da produção. Consequentemente, se o produto do trabalho é alienação, a própria produção deve ser alienação ativa – alienação da atividade de alienação. A alienação do objeto de trabalho simplesmente resume a alienação da própria atividade do trabalho” (Marx, 1983, p. 93, grifos meus)[4].
Desta forma, o trabalhador perde o controle do seu trabalho e, consequentemente do produto do seu trabalho. Surge, assim, aquele que irá controlar o processo de trabalho, que é o não-trabalhador. É assim que ele pode se apropriar, ou seja, tomar como sua propriedade, aquilo que é produzido pelo trabalhador. Isto se revela como um processo de dominação e, ao mesmo tempo, de exploração. O não-trabalhador ao dirigir o trabalho de outro, exerce uma dominação sobre este e o resultado disso é que ele se apropria do que o outro produz, ou seja, o explora. A exploração e a dominação são inseparáveis, onde há uma a outra está presente. Contudo, é o controle da atividade que permite o controle do produto da atividade. Historicamente, após isto ocorrer, o controle do produto serve de justificativa para o controle da atividade e uma vez instituída a propriedade privada, é sancionada juridicamente a primazia do controle do produto. No início, o controle do trabalho vivo permite o controle do trabalho morto (materializado em produtos, mercadorias, meios de produção, etc.) e, posteriormente, o controle do trabalho morto permite o controle do trabalho vivo. Apesar de serem inseparáveis no trabalho como objetivação, no trabalho como alienação há uma separação, centro da existência das classes fundamentais em um determinado modo de produção, e, nesse momento, pode ocorrer a separação entre trabalho e produto do trabalho.
Mas cabe aqui algumas perguntas: quem é este não-trabalhador? Por qual motivo o trabalhador se submete à dominação e à exploração? Na realidade, a relação não se realiza entre um não-trabalhador e um trabalhador. Ela ocorre entre um ou vários não-trabalhador(es) e vários trabalhadores quando se trata de uma unidade de produção (uma fábrica, por exemplo, pois esta pode ter um ou mais proprietários e diversos operários) ou um conjunto de não-trabalhadores e um conjunto de trabalhadores quando se refere à toda a sociedade. Quando nos referimos à relação entre não-trabalhador e trabalhador estamos remetendo a uma situação e relação social que envolve milhares de pessoas, que é retratada através da posição que cada um possui no processo de produção, onde um assume a posição de trabalhador e o outro de quem dirige o processo de trabalho. Esse conjunto de não-trabalhadores e o outro conjunto formado por trabalhadores formam duas classes sociais, que são representadas pelo papel que exercem na produção: uma produz e a outra dirige a produção e se apropria do que é produzido. Trata-se da relação entre classe produtora e classe exploradora.
Mas resta a questão da submissão do trabalhador. O trabalhador se submete ao não-trabalhador devido ao fato dele não possuir os meios de produção (máquinas, ferramentas, instalações, etc.) para efetivar o seu trabalho. É por isso que ele tem que se submeter ao não-trabalhador, que é o proprietário dos meios de produção. Contudo, essa propriedade só foi possível graças ao controle da atividade do trabalhador. Basta observar que a primeira forma de exploração do trabalho alheio se deu graças ao uso da força física, o uso do trabalho escravo, para entender esse processo.
Um exemplo pode esclarecer esta questão. Um artesão possui todos os meios de produção necessários para produzir calçados e por isso não precisa se submeter a ninguém. Sendo proprietário dos meios de produção e ao mesmo tempo o próprio produtor, ele mesmo irá dirigir o seu trabalho (definir quando, como e o quê irá produzir) e, decorrente disto, o resultado dele (que, no caso, é o calçado). Mas, se ele deixar de ser simultaneamente proprietário e produtor, a situação irá se alterar. Digamos que esse artesão, que é proprietário dos meios de produção, resolver parar de trabalhar e contratar diversos trabalhadores para fazer isso por ele. O que ocorrerá neste caso? Quem irá comandar o processo de trabalho e o seu resultado? A resposta é obvia: o proprietário. O que isto significa? Significa que os trabalhadores contratados por ele terão o seu trabalho alienado e isto quer dizer que não terão o controle sobre o seu trabalho e nem sobre o produto dele, que será apropriado pelo dono dos meios de produção.
Os trabalhadores se submeteram a esta dominação e a esta exploração por que não tinham outra saída. Para sobreviver é preciso trabalhar e para trabalhar é necessário ter acesso aos meios de produção. Estes, entretanto, são propriedade privada dos não-trabalhadores. Assim se vê que os trabalhadores são não-proprietários e por isso se submetem à alienação do trabalho. Os trabalhadores recebem em troca do seu trabalho o suficiente (em determinados casos mais do que o estritamente suficiente, dependendo das circunstâncias históricas) para continuarem vivos e trabalhando. É este o motivo pelo qual eles não podem escapar da alienação, pois se não trabalharem não conseguiriam os recursos necessários (alimentação, roupas, etc.) para sobreviverem. Ocorre, porém, que o que eles recebem é uma pequena parte do que produzem, enquanto que o proprietário que não produz nada, pois apenas dirige (no seu interesse) o processo de produção, fica com a maior parte do que foi produzido[5].
Como o trabalhador se relaciona com o produto de sua atividade? O trabalhador vê este produto não como algo que lhe pertence e que significa a materialização de sua vontade e energia e sim como algo que lhe é estranho e não lhe pertence. A alienação do trabalho gera a alienação do produto do trabalho. O trabalho alienado é um trabalho alheio, não pertence ao trabalho, já que não o dirige e nem usufrui do seu produto. Este produto pertence a outro, que é o proprietário dos meios de produção. Para o trabalhador, o produto do seu trabalho também torna-se alheio. Este processo, derivado da alienação do trabalho, é chamado de alheamento do produto[6]. Assim, a alienação do trabalho significa alheamento do trabalho e a alienação do produto significa alheamento do produto. Ao ser controlado por outro em seu trabalho, este se torna algo alheio, e derivado desse processo de alienação e alheamento do trabalho, temos a alienação e alheamento do produto.
A alienação do trabalho (que também é alheamento) produz o alheamento do produto do trabalho (que também é alienação). Isto ocorre porque o produto é, tal como colocou Marx, o resumo do trabalho. Por conseguinte, se o trabalho é alienado, então o seu resultado deve ser algo alheio ao produtor. O resultado do trabalho, que é produto, torna-se algo alheio, pertencente à outra pessoa. Assim, os termos entfremdung e entäusserung significam, simultaneamente, alienação e alheamento. Por conseguinte, inserir aqui a questão do “estranhamento” é realizar uma grande confusão, pois entfremdung é alienação (heterogestão) e entäusserung é alheamento. Um significa controle e o outro perda. Por isso, o trabalho alienado é um trabalho alheado e isso gera alienação e alheamento do produto. É por isso que Marx usa os dois termos juntos, pois no fundo um coloca a questão do controle (do trabalho e/ou do produto) e o outro coloca sua consequência, a perda do trabalho e/ou do produto.
A partir destas considerações, podemos dizer que o sentido jurídico/pseudomarxista do termo alienação como perda da propriedade/meios de produção revela um aspecto do problema, mas oculta o essencial, que é o controle da atividade, do trabalho, a heterogestão do processo de produção. A concepção que atribui ao conceito de o caráter de um fenômeno mental também é equivocada e tem relação com a questão da consequência da alienação e não com ela mesma. Marx desenvolveu isso ao abordar a questão do fetichismo da mercadoria, do qual trataremos a partir de agora.
O FETICHISMO DA MERCADORIA
Para alguns intérpretes, há uma indistinção entre alienação e fetichismo. Assim, coisas distintas se tornam iguais e se realiza uma grande confusão. O fetichismo da mercadoria é um fenômeno mental e não uma relação social como a alienação e o alheamento. Nos Manuscritos de Paris, Marx não desenvolveu muito a questão da consciência do trabalho diante do trabalho alienado e do alheamento do produto, a não ser uma ou outra passagem que aborda a questão do estranhamento.
Contudo, muitas vezes a tradução coloca estranhamento onde é alheamento (ou às vezes onde é alienação). A razão disso é que a palavra “estranho” remete a algo que é “estrangeiro”, “forasteiro”, ao outro. É o mesmo significado de alheio, pertencente a outro. Mas estranho, e é aqui que temos a magia das palavras e sua mutação de sentido, também pode significar a percepção que temos do outro ou de algo. Isso manifesta a oposição, na mente humana, entre o “estranho” e o “familiar”. Assim, aqueles que pensam nesses termos interpretam mal o pensamento de Marx. Se a questão da consciência do trabalhador diante do trabalho alienado e do alheamento do produto não é discutida exaustivamente por Marx, mesmo porque ele queria se afastar da concepção filosófica e idealista, ele retoma esse problema no caso específico do capitalismo. Isso ocorre quando ele aborda o fetichismo da mercadoria. Note-se que aqui não se trata de produto, um termo mais geral, e sim mercadoria, um termo mais específico, pois no capitalismo a exploração via extração de mais-valor ocorre através da produção de mercadorias. Assim, nesse caso, os termos mais gerais que expressam relações sociais mais gerais das sociedades classistas em seu conjunto, são substituídos por termos mais específicos que abordam uma sociedade determinada, específica, a capitalista.
O fetichismo da mercadoria, portanto, é um fenômeno mental tipicamente capitalista. Como nas sociedades classistas pré-capitalistas a divisão social do trabalho era menor, os meios de produção em alguns casos não estão separados dos trabalhadores (modo de produção feudal), entre outras determinações, então a consciência em relação ao produto do trabalho é distinta. Obviamente que existiu “fetichismo” antes do capitalismo, mas não fetichismo da mercadoria. Por isso é importante compreender o significado do fetichismo da mercadoria e os efeitos sobre a consciência da alienação e alheamento do trabalho e de seu produto no caso específico do capitalismo.
Se o produto do trabalho deixa de pertencer ao trabalhador para pertencer ao não-trabalhador que dirige o processo de produção, então nada é mais natural de que o primeiro sinta uma certa estranheza diante do que ele produziu. Este estranhamento se torna cada vez maior com a expansão da divisão social do trabalho. A divisão social do trabalho no processo de produção faz com que o trabalhador não veja todas as fases de criação do produto, mas apenas a parte do processo que lhe cabe.
Na sociedade capitalista a divisão social do trabalho se torna maior e mais complexa. Isto ocorre tanto no interior da unidade de produção quanto na sociedade como um todo. Esta divisão se manifesta na unidade de produção, tal como numa fábrica, através do parcelamento das tarefas no processo de trabalho. Na sociedade, ela se manifesta entre os diversos setores da produção – indústria, agricultura, comércio, serviços – e no interior de cada um destes setores, tal como na indústria, que se divide em indústria têxtil, metálica, bélica, etc. A divisão e subdivisão se reproduz em escalas diferenciadas. Essa divisão social do trabalho, contudo, não é apenas divisão técnica ou setorial. É também divisão no processo de produção, sendo que a divisão principal é a entre o operário e o capitalista, ou, em termos mais gerais, entre o trabalhador (não-proprietário) e não-trabalhador (proprietário). O conjunto dos trabalhadores não só não possui percepção da totalidade do processo de produção como também não dirige seu trabalho e seus produtos, bem como tanto um quanto o outro lhe é alheio, pertence a outro. Esse conjunto de determinações é que possibilita a emergência do fetichismo da mercadoria.
O que é o fetichismo? O fetichismo é um fenômeno no qual uma criação do ser humano é vista por este como algo que lhe é independente e possui vida própria[7]. Um exemplo disso se encontra na ideologia. Os seres humanos produziram, no decorrer da história da humanidade, diversas ideologias. Estas ideologias são criações humanas e foram produzidas num contexto histórico preciso. As ideologias sofrem mudanças quando ocorrem mudanças nas relações de produção e no conjunto das relações sociais. A consciência fetichista inverte a ordem das coisas e apresenta não só a história da ideologia como se essa fosse autônoma e independente das relações sociais como também toma a ideologia como a causa das mudanças sociais ao invés de ser o seu efeito. A crítica da ideologia alemã realizada por Marx visa justamente superar esta inversão da realidade, mostrando suas bases reais, que se encontram na história e na sociedade (Marx e Engels, 1991).
Outro exemplo é a idolatria. O ser humano cria com suas próprias mãos um ídolo e depois pensa que ele tem vida própria. Este ídolo pode ser qualquer coisa criada pelo ser humano, como, por exemplo, imagens de seres imaginários (deuses, duendes, etc.), o estado, um partido político, uma religião, etc. Erich Fromm explicita bem o significado da idolatria[8]:
“A essência do conceito de idolatria pelos antigos profetas não está em o homem adorar muitos deuses em vez de um único. Está em os ídolos serem a obra das mãos do próprio homem – eles são coisas, e, no entanto, o homem curva-se ante elas e as reverencia; adora aquilo que ele mesmo criou. Ao fazê-lo, ele se transforma em coisa. Transfere às coisas de sua criação os atributos de sua vida, e, em vez de experienciar-se como a pessoa criadora, só entra em contato consigo mesmo através da adoração do ídolo. Ele se alheou às forças de sua própria vida, à riqueza de suas próprias potencialidades, e só entram em contato consigo mesmo de maneira indireta, e submetendo-se à vida congelada dos ídolos” (Fromm, 1983, p. 51).
Os exemplos acima colocados retratam o fetichismo em geral. Ao lado desse surge, na sociedade capitalista, uma forma específica de manifestação do mesmo: o fetichismo da mercadoria. Este só surge no contexto da produção capitalista de mercadorias e é produto da forma específica de alienação do trabalho e alheamento do produto decorrente desta forma de produção. O fetichismo da mercadoria é um fenômeno típico da sociedade capitalista, pois é nesta sociedade que a mercadoria assume para o seu produtor a forma de algo que tem vida própria, independente de quem a produz. O fetichismo da mercadoria, segundo Marx, tem sua origem na própria forma mercadoria. Segundo ele,
“O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social existente fora deles, entre objetos” (Marx, 1988, p. 71).
Depois desta análise pioneira do fetichismo da mercadoria realizada por Marx, diversos outros pensadores buscaram analisar esse fenômeno, entre os quais se destaca o filósofo húngaro Georg Lukács, que chamou este fenômeno de reificação (ou coisificação)[9]. Lukács retoma a concepção de Marx ao afirmar que a reificação é um produto da relação mercantil, gerando uma submissão da consciência às formas pelas quais ela se exprime. Lukács, citando o trecho acima de Marx, retoma a discussão sobre o caráter mistificador da consciência fetichista (Lukács, 1989, p. 100) e acrescenta – embora isso já esteja esboçado em Marx quando ele trata da reificação das relações de produção e das forças produtivas[10] – que na sociedade capitalista, o fetichismo da mercadoria provoca um processo de generalização do fetichismo. Este invade toda a vida social e tem como núcleo gerador o fetichismo da mercadoria. Se o fetichismo nas sociedades pré-capitalistas tem sua origem nos mitos antigos, com seu antropomorfismo (Viana, 2010; Godelier, 1985), o fetichismo moderno tem sua fonte na produção capitalista de mercadorias e o processo de mercantilização das relações sociais (Viana, 2008). Nesse momento, a produção capitalista de mercadorias transforma os seres humanos em produtores de mercadorias e amplia a divisão social do trabalho gerando um processo intenso de mercantilização que, por sua vez, gera novas formas de fetichismo, ligado às diversas esferas especializadas criadas pela sociedade burguesa, tal como o fetichismo da ciência, da arte, etc. Lukács mostra a generalização da consciência fetichista (ou reificada) e exemplifica com o caso da definição kantiana de casamento:
A metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma ‘objetivação fantasmática’ não pode, portanto, limitar-se à transformação da mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades. Ela imprime sua estrutura em toda a consciência do homem; as propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como ‘coisas’ que o homem pode ‘possuir’ ou ‘vender’, assim como os diversos objetos do mundo exterior. E não há nenhuma forma natural de relação humana, tampouco alguma possibilidade para o homem fazer valer suas ‘propriedades’ físicas e psicológicas que não se submetam, numa proporção crescente, a essa forma de objetivação. Basta pensar no casamento: é desnecessário remeter sua evolução ao século 19, visto que Kant, por exemplo, exprimiu com clareza essa situação com a franqueza ingenuamente cínica dos grandes pensadores: ‘A comunidade sexual’, diz, ‘é o uso recíproco que um ser humano faz dos órgãos e das faculdades sexuais de outro ser humano [...]. O casamento [...] é a união de duas pessoas de sexos diferentes em vista da posse recíproca de suas propriedades sexuais durante toda sua vida’ (Lukács, 2003, p. 223).
A generalização da produção mercantil, da alienação e do alheamento, torna possível essa generalização do fetichismo. A produção intelectual e outras formas de atividade humana tornam-se progressivamente alienadas e alheadas. A consequência disso é que a percepção consciente de tais atividades tende a tomá-las como sendo coisas “estranhas” e “hostis”, como tendo vida própria, ou seja, produz uma consciência fetichista. Assim, a sociedade capitalista se torna a sociedade da alienação, do alheamento e do fetichismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No percurso do presente trabalho, distinguimos alienação, alheamento e fetichismo. A alienação significa controle externo da atividade humana, heterogestão. O trabalho alienado, sua fonte nas sociedades de classes que se manifesta originalmente e fundamentalmente no trabalho produtivo, ocorre quando o não-trabalhador (proprietário) dirige o processo de trabalho do trabalhador (não-proprietário). O alheamento é a perda da propriedade, quando algo se torna alheio, pertencente a outro. O alheamento do trabalho ocorre simultaneamente com sua alienação. O alheamento do produto ocorre quando, graças ao trabalho alienado (e alheado), o produto deixa de pertencer ao seu produtor e passa a pertencer ao não-produtor. Assim, a alienação do trabalho e do produto do trabalho gera o alheamento do trabalho e do produto do trabalho. O fetichismo ocorre quando uma criação humana é vista como algo que tem vida própria e independente do seu produtor. O fetichismo da mercadoria ocorre quando esta é vista como algo que possui vida própria e independente do seu produtor e o que possibilita isso é o processo capitalista de produção de mercadorias, derivado do processo de alienação e alheamento do trabalho e produto sob a forma específica da sociedade capitalista, fundada na extração de mais-valor.
Desta forma, a concepção marxista de alienação é distinta das demais concepções (representações cotidianas, psiquiatria, filosofia, direito, pseudomarxismo). A alienação não é um fenômeno mental e sim uma relação social que gera o alheamento e o fetichismo, sendo esse último uma manifestação da consciência. Logo, as concepções que reduzem a alienação à separação entre trabalhador e meios de produção, bem como as que a apresentam como um fenômeno mental, são não-marxistas e quando se dizem ser uma reprodução da concepção marxista, são pseudomarxistas, uma deformação da concepção original, realizando o processo de transformação do marxismo de teoria em ideologia (Korsch, 1977).
A retomada do sentido autêntico do conceito de alienação ajuda a compreender o pensamento de Marx e lhe retira o caráter metafísico que alguns lhe atribuem e, ao mesmo tempo, ajuda a compreender a sociedade capitalista. O capitalismo gera um processo de generalização da alienação e este processo possui consequências diversas e entre elas, a negação da essência humana, da realização das potencialidades humanas, transformando os indivíduos em seres humanos desumanizados. Contudo, outra consequência da alienação é a sua recusa, sob as mais variadas formas, aspecto que não poderemos desenvolver aqui, mas que é preciso ressaltar, pois não só está presente no pensamento de Marx a respeito da alienação – que segundo ele gera sua própria negação – como também na realidade cotidiana, desde as formas desumanas e destrutivas até as formas humanizadas e que buscam a humanização e a transformação social radical do conjunto das relações sociais, através do projeto de uma nova sociedade que realize a revolução proletária, meio para a emancipação humana em geral.



REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A Política. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1988.
DEJOURS, Christian. A Loucura do Trabalho. 3ª Edição, São Paulo: Cortez/Oboré, 1988.
FREUD, S. Esboço de Psicanálise. In: Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
FROMM, Erich. Conceito Marxista do Homem. 8ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
GODELIER, Maurice. Horizontes da Antropologia. Lisboa: Edições 70, 1985.
GOLDMANN, Lucien. A Reificação das Relações Sociais. In: FORACCHI, Marialice e MARTINS, José de Souza (orgs.). Sociologia e Sociedade. Leituras Introdutórias. Rio de Janeiro: LTC, 2002.
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2ª edição, Rio de Janeiro: Elfos, 1989.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MANDEL, Ernst. A Formação do Pensamento Econômico de Karl Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 2a edição, São Paulo: Hucitec, 1991.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2008.
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: Fromm, E. Conceito Marxista do Homem. 8ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
MARX, Karl. O Capital. Vol 1. 3ª Edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
MÉSZÁROS, Istvan. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.
PEIXOTO, Maria Angélica. Para Entender a Alienação: Marx, Fromm e Marcuse. Revista Espaço Acadêmico, ano X, num. 110, agosto de 2010. Acessado em 14/08/2012 Disponível em: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/10500/5775
SCHNEIDER, M. Neurose e Classes Sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
VIANA, Nildo. A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx. Florianópolis: Bookess, 2012.
VIANA, Nildo. Mito e Ideologia. Revista Educação e Mudança. Vol. 2. Num. 23, jul./dez. de 2010.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.




* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.
[1] O sentido marxista do conceito de alienação será discutido no presente texto. Entenda-se por “pseudomarxista” toda concepção que se diz marxista, mas que se revela não-marxista. Assim, o que distingue o não-marxista em geral do pseudomarxista é que o último se afirma como sendo marxista, sendo um falso marxismo.
[2] Não iremos aqui discutir a polêmica na qual se discute se o trabalho alienado é um fenômeno apenas do capitalismo ou de todas as sociedades classistas. Nesse caso, apenas manifestamos que concordamos com a posição de Erich Fromm (1983) e não com a posição de Ernst Mandel (1967), pois este usa argumentos que não se sustentam para reduzir o fenômeno da alienação ao capitalismo. Contudo, não poderemos desenvolver isso aqui, o que ficará para outro trabalho.
[3] Isso significa, entre outras coisas, que o trabalho alienado assume formas distintas em sociedades diferentes. A alienação significa dominação, controle do trabalho ou atividade, e é inseparável do alheamento, perda do que é produzido, logo, exploração. Assim, a escravidão, a servidão são formas de alienação, bem como o trabalho assalariado, que, em sua forma de trabalho produtivo, é produção de mais-valor.
[4] No original alemão, Marx usa entäusserung e entfremdung, em revezamento e às vezes os dois termos simultaneamente (ou seja, Marx usa um termo e entre vírgulas o outro). Na tradução acima utilizada, bem como em outras, aparece apenas “alienação”. Na edição francesa o tradutor justifica isso afirmando haver uma indistinção, o que é um equívoco. A tradução, portanto, retira uma palavra que é acrescentada por Marx. Aqui, tal como desenvolveremos em outra obra, Marx se refere à alienação e também ao alheamento (o que alguns, equivocadamente traduzem como “estranhamento”, permitindo a confusão entre um termo que remete a uma relação social para outro que remete à instância da consciência).
[5] Esse processo ocorre sob formas distintas em sociedades distintas. A forma de exploração (e de alienação) é diferente no escravismo, no feudalismo, no capitalismo, etc.
[6] A expressão alheamento é utilizada em algumas traduções dos Manuscritos de Paris (também chamado Manuscritos de 1844, Manuscritos Econômico-Filosóficos, etc.). Na verdade, como Mészáros já havia observado (2006), Marx usa várias palavras em alemão que são traduzidos por apenas um termo, alienação. Isso gerou problemas interpretativos e inclusive traduções visando resolver isso, tal como a de Jesus Ranieri (apud. Marx, 2008), que, no entanto, ao invés de expressar o espírito da obra de Marx, acaba realizando uma deformação ao inserir o termo “estranhamento” indevidamente no texto de Marx e transformá-lo no elemento principal do mesmo.
[7] Sem dúvida, aqui Marx se inspira em Feuerbach, que apresenta a relação entre criador e criatura no mundo religioso, na relação entre seres humanos e deuses. E não sem motivo Marx irá abordar o fetichismo da mercadoria a partir de referências à religião.
[8] O problema é que Fromm confunde idolatria com alienação (Fromm, 1983; Peixoto, 2010).
[9] Alguns intérpretes equivocados de Lukács concebem fetichismo de forma distinta de reificação. Sem dúvida, não poderemos, por questão de espaço, realizar tal discussão aqui e por isso remetemos à leitura da obra de Lukács (1989) e a afirmação de Lucien Goldmann, segundo a qual “Marx chama de fetichismo da mercadoria” aquilo que “Lukács designa com o termo reificação” (Goldmann, 2002, p. 138).
[10] Curiosamente, reificação reproduzida pelo pseudomarxismo.

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